J U L I A N Y P A I V A C O S T A D E S E N E G O N Ç A L V E S Memória, imaginário e representação em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, de Vinicius de Moraes Uberlândia, MG Fevereiro de 2014 2 J U L I A N Y P A I V A C O S T A D E S E N E G O N Ç A L V E S Memória, imaginário e representação em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, de Vinicius de Moraes Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Letras — curso de Mestrado em Teoria Literária — do Instituto de Letras e LinguÃstica da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para obtenção do tÃtulo de Mestre em Teoria Literária. Linha de pesquisa: Poéticas do Texto Literário: Cultura e Representação Orientadora: Profa. Dra. Maria Auxiliadora Cunha Grossi. Uberlândia, MG Fevereiro de 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil. G635m 2014 Gonçalves, Juliany Paiva Costa de Sene. Memória, imaginário e representação em "A espantosa ode a São Francisco de Assis", de VinÃcius de Moraes / Juliany Paiva Costa de Sene Gonçalves. - 2014. 100 f. : il. Orientador: Maria Auxiliadora Cunha Grossi. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Letras. Inclui bibliografia. 1. Literatura - Teses. 2. Literatura brasileira - História e crÃtica - Teses. 3. Moraes, Vinicius de, 1913-1980 - CrÃtica e interpretação - Teses. I. Grossi, Maria Auxiliadora Cunha. II. Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Letras. III. TÃtulo. CDU: 82 3 4 Só a ti, AltÃssimo, o louvor, a glória e a honra! Ao meu bebê, que está sendo gerado com todo amor e que traz a esperança de um mundo mais belo... 5 Agradecimentos eus agradecimentos especiais à professora doutora Maria Auxiliadora Cunha Grossi, cuja orientação foi marcada pela paciência e dedicação. Nosso convÃvio foi de valor incalculável para a realização deste trabalho. Mesmo agora e mesmo distante, nunca esteve tão perto. Às professoras doutoras Kênia Maria Pereira de Almeida e Enivalda Nunes Freitas e Souza, que deram sugestões criteriosas e fundamentais para o texto no exame de qualificação. A Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha, Leonardo Francisco Soares, Joana Luiza Muylaert de Araujo e Maria Suzana Moreira do Carmo: professores doutores ministrantes de disciplinas na fase de integralização dos créditos; as discussões em sala de aula foram fundamentais ao desenvolvimento da pesquisa aqui descrita. Ao Edinan, que revisou, formatou e normalizou o trabalho desde o relatório de qualificação. Meus sinceros agradecimentos ao professor doutor Alexandre Graça Faria, que aceitou o convite para a banca examinadora de defesa deste trabalho. À professora doutora coordenadora do curso de mestrado Elaine Cristina Cintra e à secretária-executiva do programa de pós-graduação, Maiza Maria Pereira, que sempre deram todo o suporte e auxÃlio de que precisei. À minha mãe, que me apoiou em todos os momentos vividos até agora, tornando-se a cada dia exemplo de determinação e honestidade. Ao meu pai, sempre presente, sempre paciente. Ao meu marido, João, que sempre me incentiva e dá força, com a amizade e o carinho que partilhamos durante nosso caminhar. Pelos nossos longos debates históricos. Tudo o que sou hoje é fruto de experiências vividas ao lado dessas três pessoas. Por isso, este trabalho é dedicado a elas. Agradeço a todos os familiares. Ao meu querido irmão, Marcos. Em especial, ao vovô José Paiva — in memoriam. À vovó Iracema e à tia Sônia, cujo apoio e cuja felicidade tornam ainda mais importantes as minhas vitórias. À amiga Celiana, com quem tenho passados momentos importantes ao longo desses anos. Foram muitas as sessões de ―psicanálise‖ regadas a vinho. Agradeço o crédito na realização do trabalho; sobretudo, agradeço a confiança e a amizade. M 6 A todos os meus colegas de curso com quem desde 2012 compartilho experiências inesquecÃveis. Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NÃvel Superior (CAPES), cujo apoio financeiro foi imprescindÃvel à pesquisa. Enfim, devo agradecer a milhões de brasileiros que indiretamente contribuÃram para minha formação numa universidade pública. Espero, sinceramente, devolver o investimento! 7 [...] Para são Francisco você adota o tom simples [...] Vai logo dizendo, fala que eu já li o Inferno de [Dante Que eu já sei como é e como já sei não preciso [mais ir [...] Para são Francisco diz que eu sei cantar e que eu sou poeta [...] Se for preciso diz francamente que eu não presto Mas que eu quero ir pro céu Que o purgatório é muito úmido, e o inferno Tem Lucrécia e uma porção de mulheres pra mexer [comigo Diz que eu me comporto, que eu só quero É estar com eles falando poesia Discutindo Rimbaud e tocando violão em noite de [lua cheia Não diz que eu sou formado, nem que eu sou [laureado [...] Diz só que eu não quero perder minha poesia nem [minha tristeza [...] Que eu quero ficar deitado pensando enquanto eles [rezam — V I N I C I U S D E M O R A E S 8 Resumo G O N Ç A L V E S , Juliany Paiva Costa de Sene. Memória, imaginário e representação em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, de Vinicius de Moraes. 2014. 100p. Dissertação (Mestrado em Literatura) — Instituto de Letras e LinguÃstica, Universidade Federal de Uberlândia. poeta é ―produto‖ de um imaginário sociocultural que, muitas vezes, consegue humanizar sutilmente o sagrado. O poema ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, de Vinicius de Moraes, exemplifica isso com seus elementos do imaginário e da representação católico-religiosa. Seus 138 versos apresentam não uma temática especÃfica, mas um modo de representar que usa o discurso poético para humanizar o sÃmbolo sagrado. Eis o objeto de estudo da pesquisa aqui descrita, que objetivou tanto analisar a obra desse poeta comparada com a originalidade das atitudes e dos posicionamentos de são Francisco de Assis ante o sagrado quanto investigar se o poeta apresenta a exclusão, aceitação ou não aceitação dos signos convencionais da Igreja. A pesquisa recorreu ao aporte metodológico da história cultural, ao aporte crÃtico-analÃtico da fenomenologia do imaginário e ao aporte analÃtico da crÃtica literária sobre Vinicius de Moraes para tratar do sÃmbolo e da representação como categorias de análise. Esse suporte teórico-metodológico sustenta a análise do poema, cujas constatações incluem, por exemplo, a existência de representações do santo em linguagens variadas. Na representação escrita, a poesia de Vinicius de Moraes transita entre o mundo sacro e o mundo humano: humanidade e santidade se fundem no mesmo ser, o eu lÃrico — cuja voz traduz a de um humano que busca explicações para suas dúvidas existenciais. Este estudo mostra que a reflexão sobre a vida do poeta-compositor e seu universo cultural, social e polÃtico pode revelar, ainda, os propósitos do poeta como ser humano. Palavras-chave: Discurso poético. Igreja. Mundo sacro. Mundo humano. Eu lÃrico. O 9 Abstract G O N Ç A L V E S , Juliany Paiva Costa de Sene. Memory, social imaginary and representation in ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, by Vinicius de Moraes. 2014. 100p. Dissertation (Master‘s degree in Literature) — Instituto de Letras e LinguÃstica, Universidade Federal de Uberlândia. he poet is a ―product‖ of a socio-cultural imaginary that often manages to subtly humanize the sacred element. Vinicius de Moraes‘ ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖ exemplifies that with its set of references from the social imaginary and the Catholic representation. More than a theme, its 138 lines pose a way of representing the sacred symbol by using the poetic discourse to make it human. Here is the subject matter of the research this dissertation presents, which aimed to analyze this poet‘ work compared to the originality of Saint Francisco de Assis‘ attitudes and points of view towards the sacred world as well as to see if the poet presents the exclusion, acceptance or non-acceptance of Catholic Church‘s conventional signs. To deal with symbols and representations as analytical categories, this study relied on the methodological support of cultural history, on the critical and analytical support of the phenomenology of the imaginary, and on the analytical support of literary criticism on Vinicius de Moraes. Such theoretical and methodological approach supports the analysis of the poem, which points out the existence of representations of such saint in artistic languages such as painting and poetry. In the written representation, Moraes‘ poetry operates between two worlds: the saint one and the human one. Humanity and sanctity merge into a single being: the poet, whose voice translates it into a voice of a man who seeks to understand his existential crisis. Studying this poet‘s life and cultural, social e political universe showed that they may reveal his designs as a human being as well. Keywords: Poetic discourse. Catholic Church. Sacred world. Man‘s world. Poet. T 10 Sumário Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 CAPÃTULO 1 O santo e o poeta: discursos religioso e literário. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 Representação iconográfica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 O cânone de São Francisco de Assis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Um ―Poverello de Assis‖ não canônico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Memória individual e memória coletiva no discurso do poeta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 CAPÃTULO 2 ―A espantosa ode a são Francisco de Assis‖. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 Entre o céu e a terra, a lÃrica inicial e ―A espantosa Ode. . . ‖ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 O santo, o herói e o poeta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 C A P à T U L O 3 O caráter de modernidade nos discursos do santo-poeta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 Medievo: o berço do mundo moderno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 ―Tu és a Palavra — a palavra inexistente — a poesia‖. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Teologia franciscana da palavra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S Experiência genuÃna na comunhão do indivÃduo com a coletividade. . . . . . . . . . . . . . . . 77 Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82 APÊNDICE 1 – Ãntegra da ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖. . . . . . . . . . . . . . 88 APÊNDICE 2 – Ãntegra do ―Cântico do irmão Sol ou das criaturas‖. . . . . . . . . . . . . . . . . 95 APÊNDICE 3 – Ãntegra de ―Louvação a Deus pra suas criaturas‖. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 11 I N T R O D U Ç Ã O omo introdução desta dissertação, eu poderia apresentar meu envolvimento com o objeto de pesquisa — como faria a maioria das pessoas. Mas não posso separar meu comprometimento emocional do meu pensamento lógico, porque são dimensões que se misturam em minha trajetória; porque meu interesse em promover uma apropriação histórico-literária do poema ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, de Vinicius de Moraes, decorre do desenvolvimento anterior de trabalhos na subárea história e arte. Em meu trabalho de conclusão da graduação em História, estudei a construção da representação da imagem de São Francisco de Assis na cidade de Uberlândia (MG) com base em uma análise iconográfica nos nÃveis pré-iconográfico e iconográfico. Minhas fontes foram imagens pertencentes à Igreja Católica e aquelas presentes nas lojas de souvenir. Na monografia, elucidei as caracterÃsticas atribuÃdas ao santo tendo como proposta mostrar um distanciamento na ―escrita da imagem‖ em ambos os casos. Com isso, o objetivo foi trazer para a pesquisa uma análise dos signos da iconografia de São Francisco na tentativa de abordar a construção da representação do santo como fruto de contextos inerentes ao mundo contemporâneo. Nesse sentido, foi fundamental compreender como essas imagens contribuem para o processo de construção de memórias. A motivação pessoal para o tema do sagrado decorreu, portanto, da minha vivência juvenil, do tempo em que observava e sofria influências religiosas de minha famÃlia. À formação católica deve-se certa veneração juvenil a São Francisco de Assis: esse santo me fascina devido à sua obra, que fala de sonhos e mudanças de normas universais. Busco a ilusão, o poder combativo da imaginação e a guerra à s regras estabelecidas. Por esse motivo, ao estabelecer um contato mais apurado com a poética de Vinicius de Moraes, notei uma recusa ao enquadramento de sua obra num quadro religioso comum nos cânones da Igreja, porque ele procura, pela via do discurso, uniformizar o sentimento religioso. Concomitante a essa constatação inicial, durante minhas leituras, percebi que a ode apresenta grandes distinções se comparada à s produções iniciais do poeta. Inquieta-me em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖ a lÃrica articulada com o desespero e a desilusão que trata do efeito corrosivo sobre o indivÃduo, do humanismo contrário à eminente vitória do conservadorismo religioso. A intenção aqui é, pelo questionamento da noção hegemônica de linha evolutiva dos cânones sobre São Francisco, situar a ode de Vinicius C 12 de Moraes no campo do esforço que o poeta empreendeu para fugir à s estratégias usadas pelas formas dominantes de pensamento para uniformizar o sentimento humano. Não desconheço o desafio de analisar a ode de um poeta cuja obra foi abordada por uma literatura crÃtica extensa; mas posso oferecer um trabalho original sobre a composição poética, pois, dentro do material bibliográfico a que tive acesso, surpreendentemente não existe um trabalho acadêmico publicado que problematize ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖. Este estudo se propõe a analisar elementos do imaginário e da representação religiosa — sobretudo do catolicismo — presentes no poema ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖,1 de Vinicius de Moraes (1913–80). Com 138 versos, o poema apresenta estruturas verbais e imagéticas que compõem o imaginário do sagrado incorporando mais um modo de representar o sÃmbolo pelo discurso poético, e menos uma temática especÃfica. A análise considera as atitudes e os comportamentos de São Francisco de Assis (1182–1226) perante certos preceitos da Igreja como elementos de comparação que permitem entender como o poeta apresenta a exclusão e a aceitação (ou não aceitação) de signos convencionais da Igreja e da história da religião na Idade Média. Assim como o discurso poético, tais atitudes e posicionamentos constituem o objeto de estudo desta investigação, que supõe comparar o poema deslocado do dogma espiritual com a originalidade de São Francisco de Assis em sua vontade intransigente de praticar um evangelho integral e despojado ante sua desconfiança da cúria romana; isto é, ante seu novo ideal religioso: a pobreza. Essa comparação retoma os cânones de vida desse santo elaborados pela Igreja Católica e a produção lÃrica inicial de Vinicius, chamada poesia de primeira fase ou poesia mÃstica — notável na obra O caminho para a distância. Além de Ãcone da música brasileira, Vinicius de Moraes teve reconhecimento público como Ãcone da poesia, diga-se, como vanguardista e sÃmbolo da cultura literária nacional (há quem diga até que foi o único brasileiro a ter vida de poeta 2 ). Sua produção poética, porém, tem sido pouco enfocada por estudos acadêmicos, em especial sua lÃrica inaugural. Nesse sentido, este trabalho busca suprir essa carência ao tomar aquele poema-ode como produção distinta do ponto de vista estilÃstico e poético-discursivo de textos como ―InatingÃvel‖, ―SacrifÃcio‖, ―MÃstico‖ e ―Purificação‖, nos quais o poeta idealiza explicitamente a paz, o amor à divindade e seu acesso ao sagrado. 1 M O R A ES , Vinicius de. Jardim noturno — poemas inéditos (org. e seleção: de Ana Miranda). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 2 C A STE LLO , José. Vinicius de Moraes: o poeta da paixão — uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 15. 13 Biógrafo de Vinicius, José Castello defende a tese de que a exploração do mistério da existência e de questões metafÃsicas permeia a produção lÃrica do poeta, na qual ele percebe um tom distinto no tocante à religiosidade — diz o biógrafo: ―[...] a grande aventura de Vinicius foi deslocar o mistério do domÃnio do dogma espiritual para o território do humano‖.3 Para Castello, a recorrência a preceitos e imagens do catolicismo vai se dirigir a construções lÃricas menos atreladas a esses dogmas, aproximando-se de questões humanas universais como o mistério da vida e a condição humana, o sofrimento pela morte, a força da paixão ou a frágil condição dos indivÃduos. Nessa lógica, a hipótese subjacente a este estudo é que tal humanização percebida em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖ não é um abandono completo de imagens e temas tÃpicos da produção inicial de Vinicius, pois desde o princÃpio o poeta parte de assuntos fundamentais como mistério, paixão e morte. E a exploração dessa hipótese — sua clarificação, sua plausibilidade, sua justificativa teórica etc. — apoia-se numa abordagem que combina a análise literária (a leitura interpretativa) com o aporte metodológico da pesquisa histórica, útil não só para fundamentar nosso posicionamento crÃtico relativo ao poema, sobretudo o elemento simbólico; mas também para interpretar os cânones ―oficiais‖ de Francisco de Assis e as apropriações que se fazem do cânone. Em seu processo de produção, as memórias ―oficiais‖ relativas ao santo o apresentam como exemplo para o cristão; igualmente, apresentam sua luta cotidiana em busca da fraternidade — parte-chave de uma vida religiosa não clerical, leiga — como exemplo ―real‖ e possibilidade de que todos tenham comunhão com o sagrado. Mais que isso, tais memórias aproximam Francisco de Assis de Jesus Cristo nos discursos, o que fundamentalmente solidifica sua imagem de ―herói‖ numa ―história oficial‖ da humanidade; assim, se o santo afirmou a vontade de viver como irmão menor, humilde, pequenino, exortando os fiéis, ―[...] Jesus Cristo, o Filho de Deus vivo todo-poderoso, ‗enrijeceu sua face como pedra durÃssima‘ (Is 50, 7) e não se envergonhou de se tornar para nós pobre e peregrino; e vivia de esmola‖.4 Portanto, tais memórias são seletivas: ressaltam só a imagem positiva. Essa reconstrução da imagem de Francisco de Assis sustenta uma ―história oficial‖, logo silencia discursos não canônicos mas não menos importantes para conhecer essa personagem-chave da história do catolicismo. ―História oficial‖ aqui se refere a uma concepção algo positivista de história que passou a ser refutada e criticada com mais incisão a 3 C A STE LLO , 1994, p. 14. 4 SÃ O FR A N C ISC O D E A SS IS . Escritos e biografias de São Francisco de Assis — crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Rio de Janeiro: Vozes; C EFEPA L , 1981, p . 148. 14 partir dos anos 1920. Como modelo metodológico para investigar o passado e escrever a história, o positivismo buscava ―cientificizar‖ o pensamento e o estudo humano para obter resultados objetivos e ―verdadeiros‖. Tal busca supunha separar quem pesquisa do objeto pesquisado; logo, o pesquisador deveria ser neutro: mostrar a realidade através dos fatos sem analisá-los. Supostamente, a história seria uma ciência pura, cujos fatos e documentos de que se vale falam por si: têm uma verdade implÃcita, por isso não carecem da análise crÃtica do pesquisador; enquanto a tarefa do historiador se resumiria à coleta de informações e fatos presentes nos documentos, ou seja, seu trabalho e ofÃcio seriam divulgar os fatos para não deixá-los cair no esquecimento; jamais interpretá-los. Contra essa noção de história — história dos grandes feitos, dos heróis —, levantaram- se Lucien Febvre (1878–1956) e Marc Bloch (1886–1944): historiadores franceses que lançaram as bases da corrente historiográfica que se convencionou chamar de escola dos Annales. 5 Com outra proposta metodológica, ambos não só criticaram o método positivista de fazer história, mas também apresentaram uma nova concepção de história — a ―história- problema‖ — e um novo ofÃcio ao historiador. Assim, mais que relatar linearmente os fatos do passado, à história caberia problematizá-los; mais que recolher fatos e documentos, ao historiar caberia analisá-los criticamente para interpretá-los. Nessa lógica de escrever a história, reconstruir o passado pressupõe como procedimento prévio delinear uma hipótese de trabalho, um problema a resolver, pois — diria Febvre 6 — não há história sem problema. Ao delinear um problema, quem pesquisa o passado faz escolhas, afinal o pesquisador não pode ser mero colecionador de (arte)fatos do passado recolhidos ao acaso; tem de escolher, por exemplo, materiais de pesquisa: fontes, vestÃgios, documentos — numa palavra, registros materiais da vida pretérita. Igualmente, ainda à luz de 5 O nome se associa a uma revista acadêmica onde Febvre e Bloch veicularam suas ideias. Segundo informa Burke, a revista Annales teve quatro tÃtulos: Annales d‘histoire économique et sociale (1929–39), Annales d‘histoire sociale (1939–42, 1945), Mélanges d‘histoire sociale (1942–44) e Annales: économies, sociétés, civilisations (1946–...). Após a Primeira Grande Guerra, Febvre planejou uma revista internacional para a história econômica, e seu diretor seria Henri Pirenne, um historiador belga; dificuldades levaram ao abandonado do projeto. Em 1928, Bloch retomou os planos (agora a revista seria francesa). Bem-sucedido, indicou Pirenne para a direção, mas este recusou. Então, ao lado de Febvre, ele se tornou o editor. Inspirada nos Annales de Géographie, de Vidal de la Blache, a revista foi planejada para ser lÃder intelectual na história social e econômica. A primeira edição, de 15 de janeiro de 1929, estampou um texto de seus editores sobre o fato de a revista ter sido idealizada tempos atrás, sobre barreiras entre historiadores e cientistas sociais e sobre a necessidade de intercâmbio intelectual. No comitê editorial, estavam historiadores, antigos e modernos, o geógrafo Albert Demangeon, o sociólogo Maurice Halbwachs, o economista Charles Rist e cientista polÃtico André Siegried. Com a morte de Febvre, em 1956, a revista ficou a cargo de Fernand Braudel, como esclarece Roberts. Ver: BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929–1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991; ROBERTS , Michael. The Annales school and historical writing. LAMBERT, Peter; SCHOFIELD , Phillipp (Ed.) Making history: an introduction to the history and practices of a discipline. Londres: Routledge, 2004, p. 78–92. 6 FEBV R E , Lucien. Combates pela história. 3 ed. Lisboa: Presença, 1989. 15 Febvre, o pesquisador deve indagar tais materiais porque estes não falam por si: não são um fato ―positivo‖ — diria Bloch;7 antes, o fato da história-problema é produto de uma construção ativa do pesquisador para transformar suas fontes em documentos. Dito isso, a pesquisa aqui descrita recorre a esse aporte histórico-metodológico para penetrar com segurança no terreno do imaginário e da representação; isto é, do campo do simbólico: essa zona de intersecção do fato com o imensurável na qual o universal e o particular se unem até dissolverem as fronteiras que estabelecem o problema. Em vez de reproduzir o simbolismo religioso da ode poética aqui analisada, buscamos reconhecer seus signos relativamente ao imaginário coletivo, sobretudo porque o ato de imaginar e criar do poeta, talvez, seja uma projeção instável do eu lÃrico. Este se caracteriza no tom confessional com Francisco de Assis — bastante representativo na obra de Vinicius de Moraes. Assim como em sua lÃrica, que tem seu Leitmotiv no questionamento de paradigmas confirmatórios da superioridade do sagrado, o questionamento permeava a conduta de São Francisco de Assis, que inovou e comprometeu o cristianismo com o maravilhoso do franciscanismo e ―[...] fez saltar a tampa que a cultura clerical fazia pesar sobre a velha cultura tradicional da humanidade‖.8 Além do aporte metodológico da história, nossa abordagem do objeto de estudo relativa ao campo do imaginário recorre metodologicamente a estudos de autores que teorizam o imaginário, a exemplo de Zaira Turchi; igualmente, recorremos a estudos crÃtico- analÃticos de questões levantadas pela fenomenologia do imaginário desenvolvida pelo filósofo Gaston Bachelard e pela antropologia do imaginário de Gilbert Durand. Do ponto de vista do simbólico, para lançar luz sobre o percurso dos fundamentos e do simbolismo religioso na produção do poeta, de inÃcio fazemos uma leitura de estudos crÃticos sobre Vinicius cujos autores afirmam uma reelaboração de seu misticismo que o converte em ―sentimento religioso da existência‖;9 depois analisamos a composição poética de ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖ tendo em vista a atmosfera conflituosa repleta de sofrimento e angústia evidente no texto; sentimentos estes que têm elos fortes com os temas do conflito entre corpo e alma, da solidão, da fé e da dúvida, da morte e do pecado. Tais autores incluem Antonio Candido, David Mourão Ferreira e José Castello: defensores de uma espécie de humanização do dogma espiritual. Nossa leitura sugere que, à leitura que fazem dos conflitos poetizados por Vinicius de Moraes, subjaz a premissa observável na advertência 7 B LO C H , Marc. Apologia da história ou o ofÃcio de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 8 LE GO F F , Jacques. São Francisco de Assis. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005a, p. 114. 9 Expressão de David Mourão Ferreira. FER R EIR A , David M. O amor na poesia de V. de M. In: M O R A ES , Vinicius de. Vinicius de Moraes: poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p. 100–120. 16 introdutória de sua Antologia poética: a divisão de sua obra poética em duas partes: uma ―[...] transcendental, freqüentemente mÃstica, resultante de uma fase cristã‖, outra em que ―[...] estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo material, com a difÃcil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos‖. Embora este estudo parta de uma proposta preestabelecida, não nos negamos a rever suas proposições à medida que a pesquisa demande. Assim, houve redimensionamento de várias intenções de investigação, assim com inclusão de outras. Vemos tais mudanças como algo não só previsÃvel no processo de pesquisar, mas também útil para haver crescimento intelectual. Portanto, este estudo contém uma proposta inicial (possÃvel, plausÃvel) de reflexão sobre os pensamentos de São Francisco de Assis e aqueles exaltados pelo poema-ode de Vinicius de Moraes; noutros termos, uma proposta de reflexão que poderá ajudar a entender por que esse santo é tido como ―[...] uma das personagens mais importantes de seu tempo e, até hoje, da história medieval‖.10 A dissertação que apresenta a pesquisa se estrutura em três capÃtulos. O capÃtulo 1 compara o discurso da Igreja Católica sobre Francisco de Assis e o discurso literário representado por Vinicius de Moraes como poeta — cuja conclamação do santo em suas confissões, angústias e conflitos existenciais revela ora o sagrado, ora o profano — e como ser humano — cujo olhar revela suas percepções de religião e humanidade. Os conceitos de representação e apropriação permeiam o estudo comparativo, assim como a compreensão da memória que ocorre pela comunhão do indivÃduo com a coletividade. O capÃtulo 2 compara o discurso poético de Vinicius, com ênfase em textos da obra O caminho para a distância, e o poema ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖ como produção que se distingue em sua produção lÃrica inicial. A comparação supõe uma análise da construção do ―eu lÃrico‖ na ode que contextualiza o poema segundo mudanças conceituais e percursos distintos da poética religiosa de Vinicius, de modo a evidenciar a forma diferente com que o poeta aborda a religiosidade em sua produção ao reelaborar questionamentos sobre a existência ou sobre o conflito do ―eu lÃrico‖ com Deus. Por fim, o capÃtulo considera a formação dos mitos do poeta, do herói e do santo relativamente à fenomenologia e à antropologia do imaginário. O capÃtulo 3 reflete sobre a modernidade atribuÃda aos discursos do santo e aos discursos poéticos aspirando a ―encontrar‖ os motivos que fazem Vinicius de Moraes ―escolher‖ São Francisco de Assis. Tal reflexão explora a figura desse santo e a do poeta 10 LE GO F F , 2005a, p. 9. 17 como precursores de mudanças; isto é, como representantes — ideia nem sempre análoga em seus discursos — de transformações da sociedade, como questionadores do status sociorreligioso da Igreja e do homem que enfatizam não só o conceito da santidade e devoção, mas também a atitude da Igreja Católica e dos leigos ante o sagrado. A base para essa reflexão está na obra de Jacques Le Goff 11 e nos escritos e nas biografias de Francisco de Assis; 12 como sua ação se valeu, sobretudo, da palavra — instrumento de que se serviu para transformar a sociedade de seu tempo —, analisamos suas produções como ―um vocabulário de ação‖13 e como Vinicius o denomina: ―Tu és a Palavra — a palavra inexistente — a poesia‖.14 11 LE GO FF , Jacques. As ordens mendicantes. In: BER LIO Z , Jacques. (Org.). Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1996. Ver ainda: LE GO FF , Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005b; LE GO FF , 2005a, p. 12. 12 SÃ O FR A N C ISC O D E A SS IS , 1981. 13 LE GO F F , 2005a, p. 12. 14 Ver 18ª estrofe. M O R A ES , 1993. 18 C A P à T U L O 1 O santo e o poeta: discursos religioso e literário Mas o homem também me fascinou, renascido em seus escritos, nas narrativas de seus biógrafos, nas imagens. Aliando simplicidade e prestÃgio, humildade e ascendência, fÃsico comum e brilho excepcional, apresenta-se com uma autenticidade acolhedora que permite imaginar uma abordagem simultaneamente familiar e distante. — LE GOFF , 2005a O que para os leitores a escrita é, para os olhos dos não-instruÃdos, o é a imagem, pois até os ignorantes vêem nela o que devem imitar, lendo nela inclusive os que não sabem ler. — P A P A G R E G Ó R I O M A G N O Os demais irmãos que prometeram obediência comum e, com a benção de Deus, podem recomendá-la com panos rudes e outros retalhos de fazenda. Pois o Senhor diz no Evangelho: ―Os que vestem roupas preciosas vivem com luxo e trajam vestes delicadas encontram-se nos palácios dos reis‖ (Mt 11, 8; Lc 7, 25). E mesmo que sejam chamados de hipócritas, os irmãos nunca deixem de agir direito; nem desejem roupas caras neste século, a fim de poderem receber no reino do céu as vestes da imortalidade e da glória . — REGULA NON B ULLATA , 1221 O signo religioso não se apresenta como simples instrumento de pensamento, não visa apenas evocar na mente dos homens a potência sagrada a que remete, mas quer sempre estabelecer também uma verdadeira comunicação com ela, inserir realmente sua presença no universo humano. — V E R N A N T , 1 9 6 6 ão Francisco de Assis é uma figura religiosa central no ocidente. Revolucionário meio religioso, meio leigo, mudou não só o conceito de santidade e devoção, mas também a atitude da Igreja Católica e dos leigos ante o sagrado. ―[...] exemplar para o S 19 passado [...]‖, seu exemplo permanece ―[...] para o presente‖,15 sobretudo graças à pregação marcada por ―[...] uma chama, uma pureza, uma poesia inigualável‖; ainda hoje o franciscanismo é uma ―[...] ‗sancta novitas‘, segundo a palavra de Tomás de Celano, uma santa novidade, e o Poverello [é] não apenas um dos protagonistas da história, mas [também] um dos guias da humanidade‖.16 Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, ele mostra ser um ecologista — dada a fascinação pela natureza; um anticonsumista — dada a opção radical pela simplicidade; um feminista de primeira hora — dada sua relação com Santa Clara e a Ordem das Clarissas; enfim, um defensor da liberdade de espÃrito, da alegria e da vida comunitária cuja conduta se guiava por três aspectos primordiais: certo desinteresse pela educação, a pobreza e o não clericalismo essencial. Após um perÃodo de inquietação que levaria Francisco de Assis ao que seus biógrafos chamam de ―sua conversão‖, por volta de 1206, ele passou a agrupar discÃpulos que, salvo exceções, incluÃam pessoas simples das quais não exigia méritos intelectuais nem a formação clerical reclamada pelos dominicanos — outra ordem mendicante surgida no século XIII. Ainda assim, à medida que progredia, a nova ordem dos franciscanos tendeu a se estruturar e copiar ordens predecessoras. Em 1223, Honório III aprovou de vez a regra dos Frades Menores — a Ordo Fratum Minorum — como nome oficial dos franciscanos. ConstituÃda como ordem, tal comunidade fraternal se transformou aos poucos em uma espécie de milÃcia a serviço da Igreja distinta vocacionalmente dos dominicanos, porém semelhante na organização. Os Mendicantes e especialmente os Menores pregavam pela palavra e pelo exemplo que toda a humanidade deve se salvar por uma conduta penitencial comunitária cujos modelos não estão no alto da hierarquia, mas embaixo, quer dizer, entre os humildes, os mais pobres, entre os leigos como entre os clérigos. 17 Em sua dedicação integral à pobreza, Francisco de Assis acreditava que a constituição de uma grande ordem implicava a tentação de possuir, por isso se ressentia de cada mudança em seu ideal primitivo. Assim, aos poucos se afastou do governo de sua ordem, deixando-a para frei Elias de Cortona. A partir de então, dedicou os cinco últimos anos de sua vida à meditação. No dizer de Le Goff, naquele momento — quando a civilização urbana florescia permeada por uma nova pobreza, pela humildade e pela palavra, Francisco se pôs à margem da Igreja, mas não se tornou herético; revoltou-se, mas não se tornou niilista. Antes, manteve- 15 LE GO F F , 2005a, p. 10. 16 LE GO F F , 2005a, p. 115. 17 LE GO F F , 2005a, p. 240. 20 se num ponto onde a cristandade fervilhava mais: a Itália central, entre Roma e a solidão de Alverne. Nesse contexto, Francisco desempenhou um papel decisivo no impulso das novas ordens mendicantes difundindo um apostolado voltado para a nova sociedade cristã, e enriqueceu a espiritualidade com uma dimensão ecológica que fez dele o criador de um sentimento medieval da natureza expresso na religião, na literatura e na arte. 18 Foi no monte Alverne, na Toscana, onde Francisco estava em contemplação em 1224, que Jesus Cristo supostamente lhe apareceu e lhe imprimiu os estigmas de sua Paixão nas mãos do santo. Em 3 de outubro de 1226, Francisco faleceu, para ser canonizado dois anos depois, por Gregório IX . Poucos anos após a morte do homem, o ministro geral da Ordem Franciscana, São Boaventura (1118–1274), redigiu a nova Vida de São Francisco (legenda maior), para estabelecer uma imagem mais matizada do santo. Além da Legenda maior, ele escreveu a Legenda minor a fim de substituir ―vidas‖ escritas antes, tais como a de Tomás de Celano — por muito tempo, a Legenda foi o único texto disponÃvel sobre a vida do santo e imposto como vida canônica. 19 A representação (da vida) de Francisco de Assis se estendeu a outras linguagens que não a escrita, a exemplo da pintura; a história da arte no mundo cristão católico mostra que ele é um dos santos mais representados em quadros. Se é correto dizer que sua representação em cada época enfatiza certos elementos do passado, então cabe problematizar, no presente, os possÃveis sentidos que compõem a elaboração das representações de dado perÃodo e local. Nesse sentido, aliadas à produção constante de apropriações que as permeiam e reafirmam o exemplo desse santo para o presente, tais representações constituem nosso foco de preocupação, pois o sagrado ―[...] se opõe ao profano porque é misterioso, porque exerce fascÃnio, causando, desta forma, a sensação do absoluto e de que tudo está perfeito e completo‖.20 Estabelecer relações entre presente e passado relativamente à reelaboração de signos presentes no cânone de vida de São Francisco requer considerar, como relevante, uma compreensão do mito do santo. Isso porque, no mito, muitos ―vêem [...] tão-somente os significantes, isto é, a parte concreta do signo. [Mas] É mister ir além das aparências e buscar- lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo‖.21 Ora, os mitos — diria 18 LE GO F F , 2005a, p. 9. 19 LE GO F F , 2005a. 20 ELIA D E , Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 16. 21 BR A N D Ã O , Junito de Souza. Mitologia grega. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 37, v. 1. 21 Jung 22 — expressam arquétipos: exprimem o comum ao homem de todas as épocas; igualmente, referem-se a realidades arquetÃpicas: situações que todo ser humano enfrenta em sua existência. Vão além: não só explicam e auxiliam a compreensão do homem; também alteram psiquicamente o indivÃduo e a coletividade de dada cultura. Eis por que se pode dizer que toda mitologia prevê uma forma de tomar consciência como elemento para nos configurar. Se a iconografia e o poema corroboram uma reafirmação da imagem do santo, então uma e outro podem ser úteis, senão para compreender os significados produzidos sobre Francisco de Assis e seu tempo, ao menos para tentar identificar razões para sua projeção como sujeito histórico ―[...] humanamente exemplar em relação ao passado e ao presente‖.23 Enquanto situações arquetÃpicas reelaboradas em apropriações de signos e mitos presentes na representação ―oficial‖ de Francisco fizerem sentido para nós; enquanto os Ãcones do santo forem rememorados e usados pelo rito que exprime o mito (aparentemente uma resposta para aflições de seus fiéis), cabe ao pesquisador ampliar a análise do processo de construção da imagem dessa personagem-chave da história religiosa: o ―Poverello de Assis‖. Representação iconográfica O entendimento do todo de uma composição artÃstica como a pintura supõe conhecer não só os signos que a compõem como puros e simples, mas também as convenções que permitem associá-los ao que se deseja representar e/ou significar. Essa suposição guia nosso entendimento do conceito de representação, isto é, de discursos textuais e imagéticos que apreendem o mundo, estruturam-no e moldam-no como representação. Essa noção de mundo como representação foi desenvolvida pelo historiador francês Roger Chartier, para quem podemos ter, ―[...] por um lado, a representação como dando a ver uma coisa ausente; por outro, como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou alguém‖.24 As acepções do termo representação ganham certos contornos no contexto do discurso religioso da Igreja Católica, em que as representações visuais se projetam como instrumento poderoso para proclamar a verdade revelada; no cristianismo em geral, a representação iconográfica tem suscitado controvérsias há tempos. A princÃpio, evitou-se o 22 J U N G , Carl G. O homem e seus sÃmbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 23 LE GO FF , 2005a, p. 10. 24 C HA R TI ER , Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, Rio de Janeiro, n. 11, v. 5, 1991. 22 culto a imagens dado o perigo da idolatria, mas nos séculos IV e V d. C. a iconografia cristã se desenvolveu com vigor, a ponto de afrescos e estátuas em igrejas e basÃlicas se tornarem recurso útil para traduzir significados não apreensÃveis, por exemplo, por ―[...] analfabetos, o que Zilles considera uma utilização pedagógica da imagem. 25 A despeito do debate sobre o culto a imagens e o temor da idolatria recorrente na história da Igreja, segundo Georges Duby, [...] os mendicantes, e sem dúvida os franciscanos antes de quaisquer outros, utilizaram a imagem. Uma imagem simples, demonstrativa, direta, aquela que, em todos os tempos todas as propagandas usavam nos meios populares. Para prolongar o efeito de suas palavras, sentiram a necessidade de colocar em série, lado a lado, diante dos olhos dos que os escutavam, as cenas do drama evangélico, ou as da vida de Francisco, que se identificara com Cristo a ponto de receber os estigmas. Recorreram à pintura. Essa arte é mais ligeira, menos dispendiosa. Presta-se melhor à multiplicação da imagem. 26 Por intermédio de personagens ilustres, a Igreja conseguiu legitimar o que via como uso correto das representações sagradas. Seus defensores incluem ―[...] o papa Gregório Magno (c. 540–604) e o bispo franciscano Boaventura de Bagnorea (1221–1274) [...]‖, cuja defesa se apoiava na utilidade e pertinência do que ―[...] consideravam a trÃplice função da imagem: de Escritura para os iletrados, de estÃmulo à devoção e meio de suscitar o arrependimento aos pecadores fortalecendo a memória cristã por evocar a história sagrada‖.27 Com os avanços das ideias reformadoras no inÃcio do século XVI, a Igreja Católica se viu obrigada a questionar o uso real e social das imagens religiosas para evitar problemas de culto à s imagens dos santos, muitas vezes considerado idólatra; assim, passou a controlar todas as representações produzidas. Para doutrinar essa matéria, na terceira e última sessão do concÃlio de Trento (1562–3), [...] produziu-se uma série de decretos dirigidos ao tema das artes religiosas. Tratando especialmente da pintura, no Decreto sobre a invocação, a veneração e as relÃquias dos santos, e sobre as imagens sagradas, foram examinados os programas iconográficos existentes e, sobretudo, aqueles ainda em execução (GROULIER, 2004: 65). As resoluções do ConcÃlio de Trento, todavia, ―não puseram em questão a arte em si, mas apenas suas funções, seus usos e o limite do representável‖.28 25 ZI LLES , Urbano. Adorar ou venerar imagens? Porto Alegre: ed. PU C R S , 1997, passim. 26 D U BY , Georges et al. História artÃstica da Europa. A Idade Média. Tomo I. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 90. 27 C ESA R , A. M. As transformações religiosas e a representação da Impressão das Chagas de Francisco de Assis nos centros artÃsticos. In: EN C O N TR O D E H IS TÓ R IA A N PU H , 12., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: A N PU H , Associação Nacional de História, 2008, p. 3. 28 C ESA R , 2008, p. 4. 23 Mesmo que o ataque de reformadores ao culto, supostamente idólatra, à s imagens sagradas preocupasse a Igreja, o concÃlio tridentino confirmou a legitimidade do uso destas nas práticas devocionais. Mais que isso, como se pode ler em Pierre Francastel, a Igreja Católica teria passado, a partir do século XVI, a buscar na arte uma forma eficaz de lutar contra a Reforma Protestante, sobretudo ―[...] empregando uma nova iconografia para exprimir sua doutrina‖.29 Assim, uma arte religiosa que, pela imagem, evoca a presença do divino no cotidiano visÃvel, significando uma representação tal como ela é, começou a dar lugar a uma iconografia que separa o homem do sagrado. Por consequência, impõe-se a necessidade de construir um elo entre ambas. O caminho individual para a divindade, numa cultura católica que não abandonara a caracterÃstica de ser uma cultura da imagem, exigiria, portanto, um novo modo de representar os temas sagrados. [...] De uma manifestação do divino no mundo, o que passou a ser figurado era a busca interior individual e o encontro mÃstico do fiel, ou do santo, com o sagrado. 30 Ainda hoje, as representações visuais do cristianismo — os Ãcones — seguem códigos mestres de construção que excluem visões não canônicas; e tais representações são imagens franciscanas da Igreja Católica, logo se submetem à s normas desta, a exemplo do ―Código de Direito Canônico (1983), nos Cânones 1186 a 1190 , referentes a este tema‖; igualmente, o ―[...] Catecismo da Igreja Católica (1993) para o uso e significado das imagens pelos cristãos‖.31 Numa analogia com o que diz Bachelard 32 — o sÃmbolo estabelece um acordo entre o eu e o mundo, ou seja, estabelece a relação entre sÃmbolo, imagem e imaginário —, os Ãcones 33 interligam o visÃvel (mundo material) com o invisÃvel (o mundo imaterial), assim como estabelecem os Ãdolos como limite do visÃvel e obstáculo ao invisÃvel. Os Ãcones são usados para nos levar a descobrir que em cada homem vemos Deus. Entre orientais, bizantinos ou ortodoxos, contemplar imagens de santos tem valor não só didático, comemorativo dos mistérios cuja fonte é Deus ou de estÃmulo à devoção, mas também dogmático verdadeiro e especÃfico; daà ocuparem lugar destacado na economia eclesial. Tal é esse valor que o concÃlio de Constantinopla, em 843, afirmou que ―‗A arte sagrada do Ãcone 29 FR A N C A STE L , Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 27. 30 C ESA R , 2008, p. 4. 31 PO N TES FI LH O , Antônio Pimentel. SÃmbolos e imagens franciscanas. Omnes Urbes — Todas as Aldeias — Revista Virtual de Antropologia, Florianópolis, v. 2, n. 2, 2000, p. 1. 32 BA C HE LA R D , Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 33 V ER N A N T , Jean-Pierre. Figuração e imagem. Revista de Antropologia, São Paulo: IFC H /U SP , v. 35, 1992, p. 113–28. 24 não foi inventada pelos artistas. É instituição que vem dos Santos Padres e da tradição da Igreja‘ (Mansi XIII, 252 c)‖.34 Na liturgia bizantina, o Ãcone dá primazia à visão, e não à palavra, pois aquela capta o elemento sensÃvel sob a forma espiritual e impregnada de santidade, para revelar a beleza do reino celestial. ―O iconógrafo, por isso, deve preparar-se, para a pintura, com orações e jejuns, com ascese e santidade, pois o Ãcone é feito para a contemplação sensÃvel da divindade invisÃvel e santa.‖35 No dizer de Zilles, enquanto a arte ocidental busca salientar a diferença entre o divino e o humano, a iconografia oriental salienta sua unidade. Em suas palavras, Ãcones são, para os cristãos orientais, mais que simples exercÃcios estéticos ou meros instrumentos pedagógicos para a educação do povo simples. Para a compreensão ortodoxa, os Ãcones são, ao lado da proclamação da Palavra e da celebração da Eucaristia, algo como sacramentais, ou seja, uma forma singular da comunicação do crente com Deus. 36 Associar o termo Ãcone com as imagens sagradas de são Francisco de Assis supõe reconhecer que têm um valor simbólico alto para os crentes porque os vincula ao personagem ―ultramundando‖ representado. Nesse caso, tais Ãcones — as imagens — servem à devoção e construção dos fiéis porque erigem os personagens representados como modelos para os cristãos: ―Assim como, representam os ideais da ordem, trazem modelos de vestimentas e os usos dos seus corpos‖.37 A retomada de qualidades formais do referente representado (cores, formas e proporções) úteis para reconhecê-los mostra que: O Ãcone corresponde à classe de signos cujo significante mantém uma relação de analogia com o que representa, isto é, com seu referente. Um desenho figurativo, uma fotografia, uma imagem de sÃntese que represente uma árvore ou uma casa são Ãcones, na medida em que se ―pareçam‖ com uma árvore ou com uma casa.38 Pela representação pode se instituir um representante que, em certo contexto limitado, tomará o lugar do representado. Por exemplo, uma imagem de Francisco de Assis que evoca o santo assume o lugar dele: os significados da obra tomam o lugar do santo; se não de forma idêntica, ao menos analogamente, pela atribuição de sentidos. 34 ZI LLES , 1997, p.11. 35 ZI LLES , 1997, p. 19. 36 ZI LLES , 1997, p. 17. 37 PO N TE S FI LHO , 2000, p. 2. 38 J O LY , Martine. Introdução à análise da imagem. 6. ed. Campinas: Papirus, 2003, p. 139. 25 Observada por Chartier 39 no verbete représentation do Dictionnaire universel de Furetière, que cita os manequins de cera, madeira ou couro depositados no catafalco real em funerais de soberanos franceses e ingleses, a oscilação entre substituição e evocação miméticas explicita a vontade mimética presente, enquanto o leito fúnebre vazio e coberto por um lenço que mais antigamente ―representava‖ o soberano defunto simula uma ausência. Em ambos os casos se falavam de ―representações‖. Ainda em Chartier (1991), vemos que a representação é o produto do resultado de uma prática. A literatura, por exemplo, é representação, porque é o produto de uma prática simbólica que se transforma em outras representações. O mesmo serve para as artes plásticas, que é representação porque é produto de uma prática simbólica. Então, um fato nunca é o fato. Seja qual for o discurso ou o meio, o que temos é a representação do fato. A representação é uma referência e temos que nos aproximar dela, para nos aproximarmos do fato. A representação do real, ou o imaginário é, em si, elemento de transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo. 40 Para Ernst Gombrich, trabalhos artÃsticos são objetos feitos ―[...] por seres humanos para seres humanos‖.41 No livro Arte e ilusão, ele diz que, na representação/descrição, sem que sejamos iludidos, somos surpreendidos pelo objeto representado: mesmo que não esteja diante de nós, nós o reconhecemos. Para a análise de imagens artÃsticas, Gombrich cita duas formas principais e opostas de investimento psicológico no objeto analisado: reconhecimento e rememoração. Esta é uma função simbólica, profunda e essencial, relativa ao intelecto e ao imaginário; aquele tem papel representativo e se vincula a funções sensoriais de apreensão do visÃvel. Em suas reflexões sobre o cavalo de pau como ―substituto de um cavalo‖, Gombrich salienta a substituição nos arranjos funerários: ―O cavalo ou o servo de barro, sepultados nos túmulos dos poderosos, substituem os cavalos ou os servos vivos‖.42 Se — diz ele — os compiladores do dicionário de inglês Pocket Oxford dictionary definem tal cavalo como a ―imitação exterior‖ de um objeto, para Gombrich, no cavalinho de pau a forma exterior do cavalo não é imitada. Felizmente, tal dicionário menciona outra palavra mais apropriada: ―representação‖. 39 C HA R TI ER , 1991. 40 C HA R TI ER , 1991. 41 GO M BR IC H , Ernst. H. Arte e ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986. 42 GO M BR IC H , 1999 apud GIN SBU R G , 2001, p. 92. 26 Representar, lemos ali, pode ser usada no sentido de ―invocar mediante descrição ou retrato ou imaginação, figurar, simular na mente ou pelos sentidos, servir de ou ser tido por aparência de, estar para, ser espécime de, ocupar o lugar de, ser substituto de‖. O retrato de um cavalo? Certamente que não. O substituto para um cavalo? Sim, é isso. Talvez haja nessa fórmula mais do que o olho pode ver. 43 Gombrich afirma, ainda, que a definição do dicionário diz que o artista ―imita‖ a ―forma exterior‖ do objeto à sua frente; enquanto o espectador reconhece o ―assunto‖ da obra de arte pela ―forma exterior‖. Tal definição poderia ser considerada como a concepção tradicional da representação. 44 Com efeito, uma obra de arte pode ser a réplica perfeita do objeto representado, assim como envolver algum grau de ―abstração‖. Lemos que o artista abstrai a ―forma‖ do objeto que ele vê, enquanto o escultor abstrai a forma tridimensional e a cor, e o pintor abstrai contornos e cores, produzindo a terceira dimensão. Logo, para Gombrich, a representação não é réplica nem precisa ser idêntica ao motivo. 45 Mais que isso, como o cavalinho de pau não retrata a ideia que temos de cavalo, Gombrich reconhece outro equÃvoco. Noutros termos, está ―[...] claro que toda imagem será de algum modo sintomática de seu criador, mas pensá-la como uma fotografia da realidade preexistente é compreender mal todo o processo de feitura de imagens‖.46 Todavia, se num contexto de ação tal semelhança com o natural contribui para sua eficácia, então seu uso se justifica. Em outros contextos, porém, o mais simples dos esquemas bastará; desde que retenha a natureza eficaz do protótipo ou da ideia. O grau com que isso nos afeta dependerá de ―contextos mentais‖, pois reagimos de modo diferente ao sermos estimulados pela expectativa ou pelo hábito cultural. A noção de substituto mimético de Gombrich é útil para compreendermos o vocábulo ―representação‖. Com efeito, o primeiro cavalinho de pau não era uma imagem, mas uma vara qualificada de cavalinho: podia ser montada. Logo, o fator comum era a função; não a forma — mais precisamente, o aspecto formal que cumpria a exigência mÃnima para o desempenho da função. Nesse caso, o denominador comum entre sÃmbolo e coisa simbolizada não é a ―forma exterior‖, mas a função; assim, seriam ―[...] necessárias duas condições para transformar uma vara em nosso cavalinho de pau: a primeira, a de que sua 43 GO M BR IC H , Ernst. H. Meditações sobre um cavalinho de pau. São Paulo: ed. U SP , 1999, p. 1. 44 GO M BR IC H , 1999, p. 1, et seq. 45 GO M BR IC H , 1999, passim. 46 GO M BR IC H , 1999, p. 5. 27 forma tornasse possÃvel cavalgá-lo; a segunda — e talvez decisiva — é que esse cavalgar fosse importante‖.47 A história da arte, segundo Gombrich, pode ser descrita como o ato de forjar ―chaves- mestra‖ para abrir fechaduras misteriosas de nossos sentidos;48 e a consciência de que a arte oferece uma chave à mente levou a uma mudança radical no interesse dos artistas. Diz ele: Toda arte é ―feitura de imagens‖ e toda feitura de imagens se radica na criação de substitutos. Mesmo o artista de tendência ―ilusionista‖ deve ter seu ponto de partida no feito-pelo-homem, na imagem ―conceitual‖ de convenção. Por estranho que possa parecer, ele não pode simplesmente ―imitar a forma exterior de um objeto‖ sem antes ter aprendido a construir essa forma. Se assim não fosse, não haveria necessidade de tantos livros sobre como desenhar a figura humana ou como desenhar navios. 49 Em ―Meditações sobre um cavalinho de pau‖, Gombrich mostra que mesmo um processo artÃstico aparentemente racional como a representação visual pode ter raÃzes na ―transferência‖ de atitudes e objetos de desejo para substitutos adequados. O cavalinho de pau equivale ao cavalo ―real‖ porque pode ser ―cavalgado‖. Igualmente, o elemento substitutivo prevalece sobre o imitativo no caso dos Kolossoà (fantoches de madeira ou argila, de sexo masculino ou feminino, usados para evocar proteção dos mortos quando a pessoa acolhia um suplicante estrangeiro em sua casa) e das representationes funerárias. Isso porque uma imagem não existe por si mesma (pode se referir a algo exterior a ela), logo é menos a criação de um substituto, e mais o registro de uma experiência visual. 50 O historiador italiano Carlo Ginzburg 51 assevera a prevalência de uma nova hierarquia no âmbito das imagens que remonta à herança da tradição judaica. 52 Nela, as estátuas ofereceriam mais perigo de incentivo à idolatria que as pinturas. Se o medo e a desvalorização das imagens prevaleceram na Idade Média europeia, a oposição entre eucaristia e relÃquias era explÃcita, pois se acreditava que aquela era a única memória deixada por Cristo; o resultado disso foi a desvalorização de relÃquias substitutivas, que delineou uma tendência que conduziria, em 1215, à proclamação do dogma da transubstanciação. De fato, vários historiadores ressaltaram a importância desse 47 GO M BR IC H , 1999, p. 7. 48 GO M BR IC H , 1999, p. 7. 49 GO M BR IC H , 1999, p. 9. 50 GO M BR IC H , 1999. 51 GIN Z BU R G , Carlo. Olhos de madeira — nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 52 Os livros compostos pelo Primeiro e o Segundo testamentos trazidos na BÃblia sagrada dos cristãos compõem a fonte doutrinária central das crenças judaicas e cristãs existe o conjunto. 28 acontecimento para uma história da percepção das imagens; mas permanece uma ponta de obscurantismo. Depois de 1215, o medo da idolatria começa a diminuir. Aprende-se a domesticar as imagens, inclusive as da Antiguidade pagã. Um dos frutos dessa reviravolta histórica foi o retorno à ilusão na escultura e na pintura. Sem esse desencantamento do mundo das imagens, não terÃamos tido nem Arnolfo di Cambio, nem Nicola Pisano, nem Giotto. A idéia da imagem como representação no sentido moderno do termo, de que Gombrich falou, nasce aqui. 53 Estudar representações com foco naquelas realizadas em relação ao mundo supõe considerar não só que são produtos de mentes individuais, mas também que se originam, em grande escala, em tradições culturais. Por meio das imagens, o homem reapresenta a ordem social vivida, atual e passada. Ocorre um deslizamento de sentido, uma representação do outro não idêntica, porém análoga; há uma atribuição de sentidos. 54 Adotar essa postura significa decifrar o real pelo imaginário — por suas representações. Isso porque, Na representação que uma obra de arte é, ela não representa algo que não é não sendo, portanto absolutamente uma alegoria, ou seja: ela não diz algo para que se pense outra coisa, mas justamente nela se encontra o que ela tem a dizer. 55 No estudo da cultura visual, a análise formal da obra e as informações sobre o artista são insuficientes para compreender todo o potencial da obra como representação. Nela, o sujeito encontra reflexos do seu pensar que permitem inventar uma dimensão familiar conhecÃvel e reconhecÃvel no cotidiano. Noutros termos, representar é deixar o mundo em condições de ser apreendido e compreendido pelo pensamento como [...] arquiteto das representações que medeiam as experiências do mundo. Representar é deformar e criar, para o real, mediações parciais, mas reveladoras [...] O real enfrentado na sua dimensão fenomênica e aprisionado em mediações representativas parciais cria a complexa ciência marcada pela imprecisão e pela relatividade do conhecimento que constitui a imagem (outra representação) da ciência no fim do milênio. 56 53 GIN Z BU R G , 2001, p. 102. 54 GA D A M ER , Hans George. A atualidade do belo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 55 GA D A M ER 1985, p. 59. 56 FER R A R A , L. D‘Alessio. Design em espaços. São Paulo: Rosari, 2002, p. 159. 29 O cânone de São Francisco de Assis Um exame mais atento das imagens de São Francisco de Assis no presente mostrará que estas se vinculam a fontes anteriores de sua vida. A tendência da iconografia dos santos é se desviar de figuras estereotipadas e atributos simbólicos ―[...] para se ligar à verdade da biografia e das feições‖.57 Assim, mesmo evitando um modelo conceitual rÃgido, as imagens têm de se apropriar da verdade trazida nos escritos, ou seja, têm de tomar os signos transparecidos neles. Essa propensão — cabe dizer — é percebida na virada do século XII para o século XIII, quando ―[...] se enfrentam a renovação da sociedade, de que São Francisco foi um dos principais atores, e tradições à s quais ele não escapa — homem e santo sempre dilacerado‖.58 Segundo Le Goff, os artistas anseiam representar Francisco de Assis fielmente, ou seja, sem deformá-lo sob o peso de sÃmbolos alienantes. Por exemplo, os animais, antes simbólicos, tornaram-se reais. Assim, compreendemos que as representações do santo seguem seu cânone biográfico, como regra de vida e fé para o povo de Deus. Consideremos uma representação desse santo de 1235 (FIG. 1). A pintura reproduzida na Figura 1 apresenta o santo numa composição que inclui elementos tradicionais da simbologia religiosa: o hábito marrom escuro, cabelos e barba curtos, cordão do hábito, terço e BÃblia; mais que isso, representa o ―Poverello de Assis‖ com traje de orador miserável, aspecto raquÃtico e rosto sem beleza; 59 em geral preso ao cordão do hábito dos freis, o terço se difere do terço comum, que tem cinco dezenas de Ave-Maria (o terço se impôs no século XIII como costume de recitar louvores a Maria — sentido mais difundido entre os católicos — para lembrar virtudes e glórias de nossa senhora); o crucifixo — a ―cruz de Cristo‖ — simboliza a veneração cristã iniciada após a crucificação; a BÃblia — livro antigo — resulta da longa experiência religiosa do povo de Israel.60 Assim como noutras imagens, o modelo de hábito que veste o santo 61 inclui duas partes independentes: uma que veste o corpo, outra — parte do capuz — que se apoia como capa na altura do peito. Esses signos podem ser encontrados na Regula Bullata, aprovada pelo papa Honório II I, como se lê no texto da bula de 29 de novembro de 1223: 57 LE GO FF , 2005a, p. 103. 58 LE GO FF , 2005a, p. 11. 59 LE GO FF , 2005a, p. 107. 60 ZI LLES , Urbano. Significação dos sÃmbolos cristãos. 6. ed. Porto Alegre: ed. PU C R S , 2006. 61 BER LIN G HI ER I , Bonaventura. São Francisco e cenas de sua vida. In: D U BY , Georges. et al. História artÃstica da Europa. A Idade Média. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 89. 30 Concedam-lhes, depois, as vestes de provação a saber: duas túnicas sem capuz, cordão, calças, caparão que vá até o cÃngulo, a não ser que, alguma vez, aos ministros pareça outra coisa melhor segundo a vontade de Deus. [...] E os que prometeram obediência tenham uma túnica com capuz e, se quiserem, outra sem capuz. E os que forem obrigados por necessidade poderão trazer calçados. Todos os irmãos usem vestes pobres, podendo com a benção de Deus, remendá-las de baruel e outros pedaços de pano. Eu os admoesto e exorto a que não desprezem nem julguem os homens que virem usar vestes delicadas e coloridas (cf. Mt 11, 8), tomar alimentos e bebidas finas, mas antes, julgue e despreze cada qual a si mesmo. 62 FIGURA 1 – Francisco, 123563 62 2 Rg 2, 9-11; 14, 17. Ver: SÃ O FR A N C ISC O D E A SSIS , 1981, p . 132–3. 63 D U BY , 1997, p. 89. 31 Em geral, iconógrafos dedicados à produção de imagens sacras adotam determinações da Igreja, buscando reproduzir passagens dos evangelhos que abordam uma vida de oração. Antes de as imagens sacras se tornarem objeto de ocupação de amantes das artes manuais, artistas e artesãos, sua composição cabia aos monges como função conferida à Igreja; e tal tarefa foi comparada à do sacerdote, pois ambos pregavam a palavra de Deus: um, com imagens e cores; outro, mediante as palavras e a escrita. Contudo, mais do que com palavras, ações e gestos, usados na adoração, a Igreja Católica expressa sua tradição sacra com as linhas e cores dos Ãcones, transformados em arte e artesanato; assim, além de despertar certos sentimentos no observador, o Ãcone veicula uma visão do mundo espiritual para o cristão. Essa condição do Ãcone de tradição católica impõe limites, pois ―[...] o pintor não tem a liberdade de inovação e adaptação, já que o trabalho deve refletir não o seu juÃzo estético e sim o espÃrito da Igreja [...]‖; isso, porém, não exclui a inspiração artÃstica, ―[...] exercida dentro de regras determinadas. É importante que o iconógrafo seja um bom artista e, mais importante ainda, que ele seja um cristão sincero e que viva dentro da tradição preparando-se para o trabalho através da Confissão e da Comunhão‖.64 Um ―Poverello de Assis‖ não canônico Como se vê, a Figura 1 revela caracterÃsticas e feições canônicas de Francisco de Assis que não só compõem uma representação ―oficial‖, mas também ajudam a (re)atualizar signos na imagem do ―Poverello de Assis‖. Como se verá, o discurso no poema de Vinicius de Moraes, diferentemente, não mostra uma lógica baseada nas convenções canônicas; tampouco a representação verbal impõe limites a quem representa: o texto poético deixa entrever liberdade de pensamento e criação em que o imaginário se manifesta com toda a sua força, induzindo-nos ao questionamento da apropriação do signo religioso, à quilo que se deseja representar e/ou significar. Não há mais a procura de determinação do absoluto, do verdadeiro; há, sim, um direcionamento ao encontro de muitas e variadas ―verdades‖, que dão origem a jogos complexos, porque alimentados e apoiados pela imaginação. 65 Aqui, a inovação se faz presente pelo compartilhamento social do imaginário de dado grupo, dada sociedade, dada cultura que participam ativamente de um contexto sociocultural. Ao permitir transformar os signos ante o imaginário coletivo (diga-se, a não ter de reproduzir os cânones), o ato de imaginar e criar pode ser uma projeção útil para reconstituir passados recentes ou 64 C A TEC ISM O da Igreja Católica. Rio de Janeiro: Vozes/Paulinas/Loyola/Ave-Maria, 1993. 65 M A FFESO LI , Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e OfÃcios, 1995, p. 80–1. 32 remotos como meio de comunicação artÃstico. Agora, o sagrado representa a indefinição, a indeterminação que questionam a superioridade de paradigmas. Segundo Durand, 66 o signo (o sÃmbolo) evoca algo ausente, como uma representação; mais que isso, configura pretextos de economia, que reportam a um significado presente ou, possivelmente, verificado. Exemplifica isso o sinal que antecipa a presença de dado objeto representando-o; igualmente, uma palavra ou uma sigla poderiam suprir com economia uma longa definição conceitual. Mas se os sÃmbolos poupam operações mentais, nada os impede de ser empregados arbitrariamente em certos casos; quando obrigados a perder tal aspecto, aludiriam a abstrações ligadas à s qualidades espirituais ou aos domÃnios da moral. Ainda no dizer de Durand, o imaginário seria um ―[...] conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens‖. Convém confirmar a compreensão do significado da palavra imagem como representação material de um objeto ou reprodução mental (consciente ou não) derivada de vivências, de percepções, de lembranças do passado passÃveis de ser modificadas por novas experiências. O arquétipo seria o sinônimo de ―imagem original‖, que Jung evidencia como ―[...] conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta‖.67 A compreensão da palavra imagem remete, ainda, à ação de imaginar, isto é, de projetar imagens, mental ou materialmente. Para Michel de Certeau, os sujeitos se encontram em posição de imaginar; por exemplo, uma maneira própria de caminhar nos universos construÃdos, pondo em ação um jogo sutil de táticas que manifestam uma forma de resistência moral e polÃtica. Ele reconhece capacidade na ação ou na prática de pessoas comuns, as quais revelam aptidões criativas que se mostram no cotidiano pelo viés das engenhosidades, do ―faça você mesmo‖ ou da ―apropriação indébita‖ — que ele agrupa no termo ―braconnage‖.68 Com efeito, o cotidiano revela as pessoas comuns como seres não passivos, crÃticos, abusados e criativos. Nas palavras de Certeau, o ―[...] dia-a-dia se acha semeado de maravilhas, escuma tão brilhante [...] como a dos escritores ou dos artistas. Sem nome próprio, todas as espécies de linguagens dão lugar a essas festas efêmeras que surgem, desaparecem e tornam a surgir‖.69 Com táticas de invenção no espaço mediante estratégias, recriam no cotidiano práticas de vida que deixam desvelar desejos e sonhos, como um ―fazer com‖. Enfim, Certeau reconhece nos indivÃduos uma capacidade para exercer a liberdade que recorre a mecanismos 66 D U R A N D , Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988. 67 D U R A N D , 1988, p. 14. 68 D E C ER TEA U , Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 18. 69 D E C ER TEA U , 1996, p. 18. 33 pelos quais se transformam em sujeitos e manifestam autonomia em numerosas práticas cotidianas. Dito isso, essa noção de apropriação associada com a de prática — forma com que homens e mulheres de dada época se apoderam de códigos impostos ou subvertem regras para compor formas inéditas — subjaz à nossa consideração do discurso de Vinicius de Moraes acerca de São Francisco de Assis: buscamos enaltecer a forma diferente com que ele se apropria de signos presentes na vida canônica do santo. Assim, ao evocar seu santo: ―Meu são Francisco de Assis, Francisco de Assim, poverello/ [...] Este é o homem da mulher, o homem da carne, o homem da terra/ E que te ama santo da Mulher, santo da Carne, santo da Terra‖,70 o poeta se apropria do signo relativo à bem-aventurança da pobreza, proposta pelos frades menores. Em sua humanidade, Vinicius de Moraes discursa ao Francisco santo, que é também humano. Os conceitos de Mulher, Carne e Terra sugerem um fomento à humanidade do santo, que se relacionou com santa Clara e a Ordem das Clarissas: fez-se ―carne e osso‖ e da terra, dada sua fascinação pela natureza. Aqui, o irreal comanda o realismo da imaginação — diria Bachelard. A imagem que habita o mundo imaginário, amalgamando-o, fornece ―[...] os vÃnculos, relaciona todos os elementos do dado mundano entre si‖.71 Temos uma imagem simbólica que não busca figurar a manifestação do divino no mundo, mas contribui para o encontro mÃstico, interior e individualizado, ao conclamar o santo de modo mais adequado aos olhos dos homens. Um discurso desconstruÃdo, hÃbrido dirige a confissão de Vinicius a São Francisco de Assis, levando o espectador-leitor a identificações, reflexões e projeções instáveis do eu. O sujeito parece estabelecer relações entre o que o cerca e o que invade seu imaginário de forma modificada para reconstruir ações com outros significados ao abordar, por exemplo, Deus: ―Não creio em Deus mas creio em ti — Deus é minha melancolia‖; ou o conceito de Miséria: ―E [...] porque amo a miséria em mim que me deposita em ti‖.72 Seria prematuro neste momento interpretar a motivação para a escolha de certas ideias figuradas nesse discurso, as quais aproximam as representações do poema de sua significação cultural e social quando de sua construção. Antes, convém avançarmos rumo a outras instâncias associáveis com a produção do texto poético, pois Vinicius transita entre dois ―mundos‖: o sagrado e o humano; isto é, duas realidades, ao mesmo tempo distintas e familiares, que compuseram seu cotidiano: em parte, porque ele se formou em colégio de 70 Ver 1ª e 4ª estrofes. M O R A ES , 1993. 71 M A FFESO LI , 1995, p. 115. 72 Ver 19ª e 13ª estrofes. M O R A ES , 1993. 34 padres; em parte, porque sua poesia se ergue sobre o vazio essencial do ser humano. E esse trânsito dá margem para incluirmos, no escopo de nossa análise, a memória pelo viés da relação entre o sujeito e seu grupo. Memória individual e memória coletiva no discurso do poeta Em sua ―primeira fase‖ — nos anos 30 —, o poeta Vinicius de Moraes se encontrava num cenário sociopolÃtico polarizado por dois grupos opostos de destaque na vida pública brasileira: os integralistas e os aliancistas. Os primeiros adaptaram ideias nazifascistas: estÃmulo ao nacionalismo, disciplina da sociedade, centralização de poder nas mãos de um chefe integralista, combate ao comunismo e censura a atividades artÃsticas; vestiam uniformes com camisas verdes e se sujeitavam à disciplina militar. Os aliancistas tinham como corrente central o Partido Comunista e propunham ideias revolucionárias e populares: nacionalização de empresas estrangeiras, reforma agrária, combate ao latifúndio, não pagamento de dÃvidas externas, garantia da liberdade individual e outras. Com um aumento vertiginoso, o grupo culminou na eclosão da chamada Intentona Comunista: tentativa de golpe militar para conquistar o poder; porém, a tentativa servira só de pretexto para o governo se tornar mais autoritário. Influenciado por uma onda antimodernista, ele adota ideologias direitistas, pois a ―[...] direita está na moda, seja pelo viés nacionalista, pela influência da renovação católica, seja, mais radicalmente, pela adesão inflamada aos princÃpios do integralismo‖.73 A poesia de teor católico encontra contexto fértil no movimento antiliberal, alicerçado em ideais monárquicos fortalecidos nesse perÃodo. Esse apontamento do contexto sociopolÃtico se impõe aqui porque, segundo os estudos de Maurice Halbwachs — que apresenta uma nova vertente para estudar a memória —, os acontecimentos sociais compõem a memória. Para esse autor, embora a memória aparente o particular, o individual, ela remete sempre a um grupo, pois, se o indivÃduo porta a lembrança, sempre interage com a sociedade: nossas lembranças — diz Halbwachs — ―[...] permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos‖.74 Enraizada em contextos distintos, a memória individual não deixa de existir por causa da presença de participantes diversos; apenas permite transpor lembranças pessoais convertidas num conjunto de acontecimentos partilhados por um grupo, daà que passa do individual ao coletivo. Portanto, há uma relação 73 C A STE LLO , 1994, p. 61. 74 HA LBW A C HS , Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 30. 35 intrÃnseca entre esses dois ―tipos‖ de memória; do contrário, não seria possÃvel ao indivÃduo recordar lembranças de um grupo com que não se identifica. Para que nossa memória tire proveito da memória de outros — diz Halbwachs —, ―[...] não basta que estes nos apresentem seus testemunhos [...]‖; nossa memória tem de ―[...] concordar com as memórias deles [...] [assim como tem de haver] muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos faz recordar venha a ser constituÃda sobre uma base comum‖.75 Se for assim, então poderemos considerar a constituição da memória de Vinicius de Moraes como uma combinação de memórias de grupos de que participou e que o influenciaram. Nesse caso, como sujeito ele interage com dois tipos de memória: individual e coletiva, porque o ―[...] funcionamento da memória individual não é possÃvel sem esses instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivÃduo não inventou, mas que toma emprestado de seu ambiente‖.76 Ao mesmo tempo, ―[...] na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de consciência puramente individual‖,77 que permite reconstituir o passado de modo que seja mantida a singularidade das lembranças de cada um. Logo, embora integre um grupo, Vinicius não se descaracteriza e consegue singularizar seu passado. O grupo porta a memória, e sobre ela há consensos resultantes de relações estabelecidas dentro dele. Assim, a memória coletiva engloba a memória do grupo, cujos componentes se identificam com ela. No contexto dessas relações, o poeta constrói suas lembranças, que estão impregnadas de memórias dos que o cercam; nesse caso, embora não esteja na presença dos que o circundam, seu lembrar e seu modo de perceber e ver o que o cerca se constituem com base nesse emaranhado de experiências. Halbwachs salienta a necessidade de preservar os elos (que permeiam as relações) entre os integrantes de um grupo para fazer sua memória perdurar. Isso quer dizer que o tempo da memória do grupo limita a duração de uma memória. Com efeito, esse autor diz que ―[...] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes‖.78 Como ator social, Vinicius recorre a marcas de proximidade que lhe permitam integrar um mesmo grupo para que sua lembrança seja reconhecida e reconstruÃda. Na ode ao santo Francisco de Assis, o poeta confessa isto: ―Na verdade muitas coisas eu tenho, e muita razão 75 HA LBW A C HS , 2006, p. 39. 76 HA LBW A C HS , 2006, p. 72. 77 HA LBW A C HS , 2006, p. 72. 78 HA LBW A C HS , 2006, p. 69. 36 de ser feliz/ Se não existisses talvez — mas existe, são Francisco de Assis‖.79 Se isso não ocorresse, pode-se inferir que, à luz de Halbwachs, desaparece uma memória coletiva, logo os integrantes desse grupo poderiam se perguntar: Que importa que os outros estejam ainda dominados por um sentimento que outrora experimentei com eles e que já não tenho? Não posso mais despertá- lo em mim porque há muito tempo não há mais nada em comum entre mim e meus antigos companheiros. Não é culpa da minha memória nem da memória deles. Desapareceu uma memória coletiva mais ampla, que ao mesmo tempo compreendia a minha e a deles. 80 O não reconhecimento com o grupo impede, então, o processo de rememoração do indivÃduo, pois as pessoas só se lembram de fatos especÃficos mediante os ―[...] os quadros sociais de memória [...]‖ — na expressão de Halbwachs — que armazenam e regulam os fluxos das lembranças. A continuidade desses quadros que operam sobre os sujeitos em circunstâncias variadas cria condições para rememorar, fortalecendo a memória coletiva porque se define o que devem lembrar e/ou esquecer. A rememoração dessa memória coletiva prevê critérios para nortear o objeto da lembrança com clareza e prioridade. Destacam-se, em ―primeiro plano‖, memórias de um grupo e o que foi vivido por mais pessoas como resultado das experiências coletivas; em ―segundo plano‖, memórias relacionadas com menos integrantes. Por isso certas lembranças de grupos internos e menores dentro de um grupo maior são pouco lembradas, à s vezes esquecidas. Ainda que a lembrança equivalha a um acontecimento distante no tempo, o contato com os indivÃduos que também vivenciaram tal acontecimento ou o lugar onde ocorreu permitem rememorá-lo numa relação entre memória individual e memória coletiva. Eis por que se pode dizer que ―[...] a representação das coisas evocadas pela memória individual não é mais que uma forma de tomarmos consciência da representação coletiva relacionada à s mesmas coisas‖.81 Se assim o for, então essa forma de conscientização se impõe com traço- chave da formação e continuidade de culturas humanas, porque possibilita não só armazenar informações, mas também difundi-las e fixá-las. Ora, a constituição de grupos humanos se vale, sobremaneira, da construção de processos mentais de memorização, de códigos de linguagem e de aprendizagem. Por isso, buscamos no discurso de Vinicius de Moraes marcas de sua memória individual que se fundem com a historiografia, mas que não apagam o quanto uma se sobrepõe à outra. A 79 Ver 21ª estrofe. M O R A ES , 1993. 80 HA LBW A C HS , 2006, p. 39 e 40. 81 HA LBW A C HS , 2006, p. 61 37 memória individual — assim entendemos — sobrepõe-se à historiografia e nos instiga a procurar detalhes que interferem no comportamento do ―eu lÃrico‖ em especial e que, fatalmente, pode levar a reminiscências de uma sociedade e seus costumes e, daÃ, à construção de um conhecimento daquele perÃodo a que pertence. A mistura de português com inglês no texto poético exemplifica essa questão porque configura um subterfúgio para dar mais veracidade à s paisagens que traduzem a vida estudantil de Vinicius na Inglaterra: ―Just now I have been in a bleary party in the Magdalen‘s College/ And there was an Armenian and a Japanese and all the others/ Good innocent people, drinking some liquor in their rooms/ And I was a bloody phantom between them, so help me God!‖.82 Nesse momento, a memória individual de Vinicius mostra elementos representativos da memória coletiva, sobretudo costumes e atitudes expressas por indivÃduos de uma sociedade. Esses versos apontam a construção do que podemos chamar de uma nova história, que põe de lado os fatos em detrimento de lembranças desveladoras as quais permeiam a memória individual do poeta e cujo conjunto historiciza dado momento. A memória individual se enraÃza nos quadros interiores da simultaneidade e contingência sincronizados e condicionados à existência social do sujeito, enquanto a memória coletiva recompõe o passado com mais amplitude. A construção individual da memória oferece um conjunto de memórias alcançadas pela conquista progressiva de seu passado individual. A memória individual e a memória coletiva evoluÃram desde a Grécia Antiga. A evolução se apresenta de inÃcio na mitologia com Mnemosyne: deusa da memória, mentora da poesia lÃrica, guardiã dos tempos heroicos, dos feitos memoráveis e da volta à s origens. Mãe das Musas, irmã de Cronos, tem no poeta seu intérprete: abençoado com o dom de ver o passado, o presente e o futuro. Como orientação, ele escolhe o passado, que se alarga porque se abdica de ser meramente individual para buscar o ―tempo antigo‖, a idade primeira, o tempo original. 83 A fusão de ambas as memórias se atribui à história no processo de constituição do grupo social e de conquista do passado coletivo da memória. Assim como a literatura, a história veicula — e representa — o fato passado; isto é, configura o mundo através das palavras. Nesse caso, o indivÃduo que tem inspiração poética, ao recriar seu mundo verbalmente, torna-se aquele que detém o conhecimento do passado e que o articula. Ele tem 82 Em tradução livre não atinente a aspectos estético-formais: ―Acabei de sair de uma festa confusa na faculdade Magdalen/ Havia um armênio e um japonês, além de outros/ Gente boa e inocente, bebendo conhaque em seus dormitórios/ E eu era um verdadeiro fantasma entre elas, Deus me ajude‖. Ver 46ª e 47ª estrofes. M O R A ES , 1993. 83 V ER N A N T , Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 107. 38 o poder de estar presente no passado, no presente e no futuro, porque ―[...] possui a sabedoria inerente da onisciência do divino e do humano‖.84 Com efeito, à luz dessa tarefa atribuÃda ao poeta, podemos afirmar fatores que possibilitaram ao criador da ode a São Francisco matizar várias linhas de enfoque. Seu discurso começa com uma autoavaliação sensÃvel e racional em tom confessional, como uma ponte sobre o abismo dirigida ao santo. Testemunhamos o sinônimo da agudeza analÃtica do poeta em seu discurso; o que apresenta uma realidade distinta da potência sagrada com a humanização de temas sobre os quais se ergue a maior parte das religiões. O fato de Vinicius partir da percepção de seu lado obscuro — a fraqueza humana: ―[...] o impuro, o inconstante, o trágico, o leproso e possivelmente o morto/Que vem a ti o fiel, o calmo, o humano, o constante‖85 — obriga-nos (e nos incentiva) a aprofundar as discrepâncias da fertilidade do sagrado e do humano, estabelecendo analogias entre paradoxos. Para registrar sua solidão, a voz confessional do ―eu lÃrico‖ direcionada a são Francisco de Assis ecoa confissões de vivência pessoal: momentos de deslumbres, momentos de impregnação da realidade. O tom é de queixa em ocasiões distintas, nas quais transpõe ao papel o cenário de seu exÃlio em Oxford num discurso poético carregado de força e brilho, traduzido nas imagens verbalizadas em versos que descortinam as impressões do poeta sobre o mistério, a paixão e a morte: ―Quantos livros escrevi — e sou tão moço! e não compreendo de mim/Senão que sou cruel com a mulher e que minha angústia não tem fim‖.86 A humanidade se faz presente em um Vinicius enamorado de sua primeira musa: Tati, com quem passou várias noites; o poeta atravessa a experiência radical da solidão com a felicidade que tomava o seu ser após a segunda dose. Talvez ninguém tenha idealizado os poderes do álcool quanto ele; dias de fecunda criação facilitada pela fase de silêncio e reclusão que o motivaram ao diálogo com a condição humana. Percebemos um conjunto de ideias, sentimentos e realidades que se movem na tentativa de aproximar o sagrado do mundo pela experiência do humano, pela palavra sacramentada nas relações entre homem e mundo, entre homem e mulher, entre ele e sua consciência. Se assim o for, então pressupomos que a literatura se constrói na resposta dada a perguntas que o homem faz sobre seu passado, presente e futuro: o desafio é entender (e se fazer entender) o caráter imprevisÃvel das respostas. 84 V ER N A N T , 1990, p. 107. 85 Ver 2ª estrofe. M O R A ES , 1993. 86 Ver 55ª estrofe. M O R A ES , 1993. 39 Entendemos que, por meio do ―eu lÃrico‖, Vinicius de Moraes retoma momentos que lhe são caros e denotam a caracterÃstica cÃclica do tempo. Em seu discurso predomina a sensibilidade externada ao amor e à s explorações da condição humana, fruto das tendências do recolhimento e da introspecção. No dizer de Castello, o ―[...] poeta está definitivamente partido ao meio. Um Vinicius formado na direita, entre verbetes do catolicismo, do integralismo e do fascismo, se opõe agora a um outro Vinicius que começa a se enamorar da esquerda e do socialismo‖.87 Notamos seu intento de expressar que as contradições, os paradoxos e as semelhanças da condição humana em diálogo com a potência sagrada se complementam e proporcionam uma reflexão sobre as formas. Isso acontece interna e externamente quando apreciamos a estreita relação entre o real e o imaginário e/ou entre o paradoxo desses dois ―mundos‖. A arte exploratória prevalece sobre a arte das certezas; ele não aponta um caminho, mas deixa claro que o procura incessantemente: ―Ah, que a vida não tem solução. Muitos o disseram em vão/E o direi em vão, e morrerei, e os que me virem, sorrirão‖.88 Dito isso, o discurso do poeta não entra no cânone; antes, apropria-se livremente do mais evidente e aparente. Por isso, exclui a linha fina e sutil da elevação aos céus, suprime o ar tranquilo e delicado; revela suas percepções de religião, humanidade, pobreza, injustiça, prazer carnal, vida, liberdade, degradação, penitência, inferno e morte. Vinicius de Moraes não representa o santo, mas o conclama, com vocativos recorrentes para que este ouça suas confissões, angústias e conflitos existenciais e humanos, reveladores de seus olhares voltados ora ao sagrado, ora ao profano. Ele não busca figurar a manifestação do divino no mundo, mas contribui para o encontro mÃstico, interior e individualizado, ao revelar o santo de um modo adequado ao olhar do homem. 87 C A STE LLO , 1994, p. 117. 88 Ver 59ª estrofe. M O R A ES , 1993. 40 C A P à T U L O 2 ―A espantosa ode a são Francisco de Assis‖ A ode é, como a etimologia atesta, um canto, e na tradução do Salmo LVII dos Setenta, aparece a palavra empregada para designar uma fórmula mágica; e Homero fala da ode como o canto mágico que os filhos de Autólico executaram para estancar o sangue que corria da ferida de Ulisses. — S P I N A , 2 0 0 2. uando conclama o santo em vez de representá-lo e quando subjetiva e interioriza a experiência ao delinear um santo coerentemente com o olhar humano em vez de figurar externamente o divino, o poeta deixa entrever uma forma diferente de abordar a religiosidade que convém evidenciar em sua produção. Para isso, a formação dos mitos do poeta, do herói e do santo relativamente à fenomenologia e à antropologia do imaginário, pode ser um aporte útil para comparar o discurso poético de Vinicius com ênfase em textos da obra O caminho para a distância e em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, contido — cabe reiterar — em Jardim noturno, livro de publicação póstuma que reúne 107 poemas inéditos, além de ideias, fragmentos e poemas inacabados. Foi organizado pela romancista Ana Miranda, após pesquisa no acervo da Fundação Casa Rui Barbosa, na capital fluminense. Ela informa que Poucos são datados, mas pelo estilo, pela letra, e, em certos casos, pelo tema abordado, podemos presumir a época em que foram feitos. Há poemas longos, poemas curtos, baladas, odes, alexandrinos, letras para músicas sonetos escritos pela mão do mestre do ritmo. Ora ―puros mananciais‖, ora ―condutos de seção rigorosamente geométrica‖ (Manuel Bandeira). Poemas ―transcendentais‖ da fase mÃstica e os da ―aproximação do mundo material‖; poemas circunstanciais dedicados a amigos, a filhas de amigos recém- nascidas, a mulheres que o poeta amou. Poemas singelos de sua adolescência que revelam um precoce espÃrito poético; outros que manifestam seus ―provavelmente imaginários tormentos pessoais‖, como disse Otto Lara Resende. 89 89 M IR A N D A , Ana. Apresentação. In: M OR A ES , Vinicius de. Jardim noturno — poemas inéditos (org. e seleção: de Ana Miranda). São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 13. Q 41 A comparação supõe analisar a construção do eu lÃrico na ode, que contextualiza uma passagem de território: da dimensão religiosa para uma dimensão de materialização da espiritualidade. Assim, ela funciona como expressão verbal adequada para obrigar a natureza a obter a cura desejada. As palavras do canto mágico não são dirigidas ao enfermo, mas a forças que determinam o sangramento, que tentam se ligar magicamente pela palavra. Tal funcionamento alude a uma passagem do poema Odisseia — livro XIX , v. 457 — onde se lê que os filhos de Autólico 90 tratam da ferida que um javali fez em Ulisses com uma fórmula de encantamento para estancar a hemorragia após prensarem o ferimento. Logo, nosso objeto de estudo seria como uma fórmula de encantar encontrada pelo poeta, que o liga à força a qual poderá curar-lhe a ferida. Há quem diga que ―A espantosa ode...‖ é uma ―[...] imensa charada de 138 versos‖.91 Considerada por Castello como ―[...] composição poética menos inspirada que traz registros esparsos de sua vida em Oxford [1938–9]‖,92 quando se valeu da primeira bolsa de estudos do Conselho Britânico dada a um brasileiro para estudar lÃngua e literatura inglesas no Magdalen College. 93 Esse perÃodo, supostamente, foi marcado por uma atmosfera de angústia e solidão. O derramamento lÃrico em tom confessional apresenta uma estrutura poética pautada em versos extensos — os ―versetos‖ —, marca evidente em Paul Claudel.94 Suas linhas de composição poética — longas, sem rimas, com ritmos bÃblicos e enumeração tÃpica do sermão litúrgico — remetem à menção feita por Juliana Santos95 sobre as ―[...] modulações necessárias para a produção de uma poesia que procura estabelecer o questionamento acerca do plano divino, do destino do homem e do sentido de nossa precária existência‖; isto é, 90 Filho de Hermes e QuÃone, Autólico é personagem da história antiga que teria se casado com Anfiteia, mãe de Ulisses; logo, é avô de Ulisses — cujo nome foi dado por ele. Mora no monte Parnaso, onde seu neto — em visita para uma caçada no monte — foi ferido por um javali; e foi a cicatriz deixada pelo ferimento que levou sua antiga ama-seca a reconhecê-lo quando ele voltou de Tróia. Autólico é conhecido como o maior ladrão da época: roubou o cinturão de Héracles e até o poderoso Zeus. Cf.: SM I TH , William. Dictionary of Greek and Roman biography and mythology. Boston: Charles C. Little; James Brown, 1844, p. 467. Além de ser personagem da mitologia grega antiga, Autólico está presente no Conto de inverno, peça de Shakespeare em que um rei — Leonte —, enciumado do amigo Polixeno —, manda prender a esposa deste, HermÃone. Na cadeia, ela teve uma filha que o rei abandonou — Perdita —, mas que se salvou, diferentemente da mãe, que morreu na prisão. Anos depois, o filho de Polixeno, Florizel, apaixona-se por Perdita, mas seu pai é contra o relacionamento dele com uma plebeia. Autólico entra na história como mascate que ajuda Florizel a fugir para a SicÃlia sem que seja ser percebido, trocando de roupa com ele. Além de não informar PolÃxenes que seu filho fugiu, ele manda o palhaço inconsciente e Pastor Velho para o navio que transportava Florizel e Perdita para a SicÃlia. Cf. HA Z LI TT , William. Characters of Shakespeare‘s plays. Editado por J. H. Loban Cambridge University Press: New York, 2009 [1ª ed. 1909], p.14; 210. 91 C A STE LLO , 1994, p. 105. 92 C A STE LLO , 1994, p. 105. 93 Da Universidade de Oxford na Inglaterra. É uma conceituada escola de poetas instalada num prédio de alma gótica. Ver: C A STE LLO , 1994, p. 102–4. 94 Grande nome da poesia católica francesa. 95 SA N TO S , Juliana. Vinicius de Moraes e a poesia metafÃsica. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 29. 42 qualidades atribuÃdas à s primeiras publicações de Vinicius. Tais atributos caracterizam seus poemas como ―poesia mÃstica‖, resultante de sua fase cristã e que ―[...] termina com o poema ‗Ariana, a mulher‘‖, publicado em 193696 e de que tratamos mais adiante, em contexto mais apropriado. O levantamento bibliográfico que fizemos — cabe reiterar — não identificou trabalhos acadêmicos publicados que analisassem ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖; salvo uma explanação da lÃrica inicial e da ode cujo autor — José Aderaldo Castello97 — refere-se ao poema assim: É uma auto-identificação que se impõe à medida que se potencializa como fator de eliminação do possÃvel conflito matéria versus espÃrito, homem versus Deus. Reduz o confronto desse dualismo à coexistência paralela de suas partes, de maneira que convive com a culpa, enquanto preserva a fé em Deus como uma certeza interior, sem remorso ou arrependimento. O poeta acata a consciência de uma condição de vida já de origem irremediavelmente renegada, ao mesmo tempo em que se acomoda com o sentimento religioso que lhe foi transmitido conforme a tradição católica brasileira. Parece, pois, imune ao ato de contrição confessional, não obstante ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, na verdade antes de tudo um auto-retrato em que o poeta opõe a sua condição humana à pureza impoluta do santo. O discurso lÃrico de ―A espantosa ode...‖ se alicerça na superação de condicionamentos sociais como a linearidade temporal. A postura de viver na fronteira entre dois mundos permite ao poeta percorrer outros planos da existência — futuro e passado — voltando-se a uma sabedoria interior. A fim de revelar e viver sua interioridade imaginária, ofuscada pelas amarras sociais, como vontade de inventar percepções do sagrado, o poeta inicia seu canto mágico: Meu são Francisco de Assis, Francisco de Assim, poverello, ou como te chame a sabedoria dos povos e dos homens Este é Vinicius de Moraes, de quem se podia dizer — o poeta — se jamais alguém o pudesse ser depois de ti.98 96 Ver MO R A ES , Vinicius de. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 97 C A STE LLO , José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500–1960). São Paulo: ed. U SP , 2004, p. 264–5. 98 Justificamos a citação de duas linhas com recuo com base em Roger Chartier, para quem as formas — o suporte — do texto condicionam sua intelecção. Assim, se o poema é substância e é forma ao mesmo tempo, então sua disposição (tipo)gráfica na página seria atributo associável só com a forma impressa — isto é, com a leitura (silenciosa). A forma oral — por exemplo, quando o poema é recitado de cor a uma plateia que não tem o texto em mão — não se condicionaria a elementos como estrofes (com dado número de versos), dado número de estrofes por página, versos com extensão que ultrapassa a mancha tipográfica da página, daà terem de ser quebrados de modo a preservar seus atributos fônicos (tônicas, ritmo, aliterações, rimas etc.). Pensamos que descaracterizarÃamos menos a forma gráfica da ode — por exemplo, a extensão dos versos, generosa em certas passagens — reproduzindo o máximo de sua disposição gráfica. Ver: C HA R TI ER , 1991. 43 A correnteza de mudanças de posicionamentos ante o sagrado é vista como desequilÃbrio. Mas se trata de um desequilÃbrio que equilibra, reordenando as relações entre o espiritual e o humano pela lógica da liberdade. Tal desequilÃbrio é visto como fase difÃcil, expressada por uma voz confessional aflita, que equaciona o sentimento religioso com outro aspecto dominante de sua poesia: a tentação irresistÃvel que sobre ele exerce a indiscriminada presença do prazer. Vejamos: [...] Dou-te meu voto além da mulher! é a criança que te fala Quando subitamente se conheceu menino no grande silêncio de uma sala. Quando brincando com o próprio sexo o surpreendeu sensÃvel E o viu inteligente e emocionado e não compreendeu. E que criou sozinho a primeira forma nua para o prazer contemplativo E que se deu a ela desvairado do mistério de se saber vivo. E que a transportou na memória em amor e que foi traÃdo Pelo toque de outra mão menos pura e mais desmerecida. E que foi seviciado antes do sêmen pela desventura Feito mulher, e a perdoou, e a amou, e a fez sua criatura. E que foi iniciado nos prazeres da carne como o inocente aprendiz A quem a mulher diz — Faz! e ele faz, tal como eu fiz. Antes do sêmen! e não morri — e bela fiz minha criatura Eis por que não há salvação e eu amo a minha degradação e impostura. Porque eu sou o sedutor, se seduzido, e o erótico, se seviciado E o amante, se querido, e o perdido, se privilegiado. Como se pode depreender desses versos, o prazer é valorizado como sentimento perturbador, como afeto mundano, como espaço para vivências — radicais — relativas à sexualidade. Curiosamente, embora a temática desses dÃsticos tenha a potencialidade de libertação ao se degustar uma sensação proibida, as metáforas parecem dar um tom algo triste à ode. A escolha, portanto, corrobora a expressão de sentimentos possÃveis de tristeza ou fraqueza ao se adentrar a estrutura de uma civilização repressiva. Envolvido em tormento profundo com tal estrutura — aqui, a Igreja Católica —, o poeta lança mão de imagens para representar um ―eu lÃrico‖. Vejamos: 44 E que criou sozinho a primeira forma nua para o prazer contemplativo E que se deu a ela desvairado do mistério de se saber vivo. E que a transportou na memória em amor e que foi traÃdo Pelo toque de outra mão menos pura e mais desmerecida. Vinicius sugere o sentimento de busca eterna por uma sensação pura de prazer, porém condenada e que permanece como nostalgia e completude de felicidade vivida na infância. Assim, pressupondo-se que sua infelicidade advenha dessa situação, no momento em que o ―eu lÃrico‖ reprimido se vê em uma sociedade católica repressiva e não consegue lidar com isso — com a opressão eterna do homem sobre o homem —, o silêncio vem como metáfora e nos chama a sair do cotidiano de caminhos já traçados para adentrar uma realidade imaginária. O chamado permeia a ode porque seu soar tem outro objetivo: acordar um eu interior como um apelo inaudito, um poema que não alcança traduzir ideias em palavras... Ouve o apelo mais Ãntimo, o que não está nas minhas palavras E que está no meu ser infeliz e no ser infeliz que eu crio à minha passagem. Essa valorização do interior do indivÃduo e da espiritualidade pode ser analisada como instrumento de desafio ante os pressupostos racionais e da ciência, pois apresenta um caráter inefável e transcendente, inacessÃveis à razão. Os mistérios do sujeito lÃrico apresentam a marca do oculto como enigma engenhoso a ser solucionado ou segredo torpe a ser desmascarado. Tenho um mistério a te dizer, mas quem sabe não o ouvirias Vendo-me criança — se é que eu fui criança um dia! A fim de compreender a formação da estrutura de uma civilização repressiva — sÃmbolo opressor para o nosso sujeito lÃrico —, dialogamos com Marcuse à luz de Freud. Como se sabe, na teoria freudiana a vida psÃquica do homem é regida por duas pulsões: a de vida — Eros — e a de morte — Thanatos. Marcuse entende o Eros como manifestação da libido, pois é de natureza sexual e sua função é unir os indivÃduos em unidades cada vez maiores. ―Eros como pulsão de vida é sexualidade e a sexualidade existe, enquanto função original, como ‗obtenção de prazer a 45 partir de zonas corporais‘.‖99 Além disso, a pulsão de vida indica o caráter polimorfo perverso da sexualidade, que significa, historicamente, o primado da sexualidade e da reprodução, que depois se torna a reprodução no casamento. Por isso, para existir organização em dado grupo social, é preciso haver a dessexualização do indivÃduo, pois o homem é originalmente o campo potencial da sexualidade e é regido pelo princÃpio de prazer. Dessa forma, tenderia a agir somente conforme suas pulsões. Com a sua dessexualização, o homem está pronto para enfrentar a civilização. A pulsão de morte é o elemento da agressividade: tende à destruição e busca eliminar conflitos em direção à morte. Eis por que se diz que há uma luta entre as duas pulsões de caráter ambÃguo na sociedade: Eros a constrói; Thanatos a destrói. Essa disposição da pulsão de morte se manifesta no princÃpio de Nirvana, que significa a tendência à completa imobilidade e cuja ―[...] primazia [...], a terrÃvel convergência de prazer e morte, dissolveu-se logo que foi estabelecida. Por muito universal que seja a inércia regressiva da vida orgânica, os instintos esforçam-se por alcançar seus objetivos de modos fundamentalmente diferentes‖.100 No entanto, convém ressaltar outra caracterÃstica de Eros: parece se conciliar com seu oposto; isto é, aproxima-se da morte. Assim, Thanatos se torna um parceiro legÃtimo e aquela luta que se perpetuava nesse sentido constitui uma dinâmica primordial. Além disso, se o princÃpio de prazer e desejo de regressão e imobilidade integral se embasam no princÃpio de Nirvana, então seria plausÃvel caracterizar a morte segundo outro aspecto, que Marcuse traduz nestes termos: ―O instinto de morte é destrutividade não pelo interesse destrutivo, mas pelo alÃvio de tensão‖.101 Assim, pode se dizer que a morte é inconscientemente uma fuga à dor e à s carências vitais; logo, Eros age contra o sofrimento e a repressão. Na lógica desse pensador, ―A morte deixaria de ser uma finalidade dos instintos. Continua sendo um fato, talvez mesmo uma necessidade suprema — mas uma necessidade contra a qual a energia irreprimida da humanidade protestará, contra a qual deflagrará a sua maior batalha‖.102 O objeto deste estudo deixa entrever alusões à ideia de morte, explorada em seu sentido de silêncio ou eternidade absoluta. O poeta a percebe não como boa notÃcia, como ponto de partida para os caminhos de outra vida: por isso não consegue lhe sorrir. Lembra-se de que o homem tem uma existência que declina constantemente rumo à morte; e, assim, 99 M A RC U SE , Herbert. O fim da utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 115. 100 M A R C U SE , Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução Ãlvaro Cabral. Rio de Janeiro: J C , 1999, p. 44. 101 M A RC U SE , 1999, p. 47. 102 M A RC U SE , 1999, p. 203. 46 angustia-lhe a percepção dos limites entre espaços e tempos imensuráveis. O sujeito poético usa a ideia de que a vida após a morte não é purificadora da vida terrena, por isso ele deveria ser amaldiçoado por seus pecados: ―Nunca criatura foi tão pagã como eu, so help me God! Arrastando meu ser à execração e à contemplação quieta da morte‖. A plena fruição das pulsões — cabe frisar — acontece no princÃpio de prazer, que significa um estágio sub-histórico em que ocorrem as satisfações das pulsões imediatas. Desse estágio, o que ainda está presente é a fantasia. Nela se encontram vivos os desejos inconscientes, ainda possÃveis sem haver repressão. Ela faz a ponte entre o sonho e a realidade e pode ser materializada sob a forma da arte. Segundo Marcuse, ―[...] a fantasia não só desempenha um papel constitutivo nas manifestações perversas da sexualidade, como imaginação artÃstica, também vincula as perversões à s imagens de liberdade e gratificações integrais‖.103 Além disso, é importante para os instintos humanos porque, enquanto na realidade as coisas se apresentam como desagradáveis, controladoras e corretas, na fantasia o correto não existe: não há moral. Marcuse afirma que a fantasia se vincula ao Eros primário — a sexualidade. ―Na medida em que a sexualidade é organizada e controlada pelo princÃpio de realidade, a fantasia afirma-se, principalmente contra a sexualidade normal.‖104 Nesse sentido, o eu lÃrico reprimido que antes aspirava ao prazer agora o teme; abre-se à tristeza, ao mundano, Porque me sinto covarde de não poder dormir e precisar fechar a porta Ao vento frio ou ao chamado sombrio da pureza morta. Na ode, a bebida é a primeira chave para chegar à fantasia e aos enigmas do ser. Dá apenas a primeira volta no alargamento do portal para a comunicação com um plano superior e coletivo que há no interior do indivÃduo. Assume o papel de musa: move não só o poeta, mas também sua produção. É com essa função produtiva — libertar a imaginação — que suas obras poéticas teriam sido realizadas nos estados ―altos‖ da mente; porque [...] há em mim uma fonte pura de mal que me embriaga De bem, mas que subitamente me estanca o que me falta. Esse mal supre as experiências ou estados existenciais da rebeldia, materialização da espiritualidade e visão alucinógena da consciência. É um jogo, é uma divagação. Mas é 103 M A RC U SE , 1999, p. 62. 104 M A RC U SE , 1999, p. 136. 47 agradável e tem a linguagem do princÃpio de prazer: ―[...] a fantasia tem um valor próprio e autêntico, que corresponde a uma experiência própria — nomeadamente, a de superar a antagônica realidade humana‖.105 É preciso entender que à civilização subjaz a substituição do princÃpio de prazer pelo de realidade, isto é, a existência mesma da civilização: o estágio em que houve a repressão das pulsões que condenou o homem à infelicidade. O sujeito lÃrico apresenta-se ao Santo como ―[...] o mágico do desespero, o inquisidor e o sedutor, o poeta triste‖. Na metapsicologia de Freud, essa condenação é justificada porque o princÃpio de realidade se fundamenta na Ananke, a luta pela existência em uma realidade desprovida de elementos que possibilitem suprir as necessidades; nesse caso, a possibilidade de satisfação passaria pela poesia — pela criação poética. Como a condição de poeta suspende o prazer em que predomina o sofrimento fÃsico — como um espasmo —, então é incompatÃvel o princÃpio de prazer na civilização repressiva. Diz o poeta: ―Meu São Francisco de Assis! Ouve tu ao menos a minha inefável miséria. Sem perdão e sem consolação e sem fim nos caminhos da Terra‖. Como se pode ler, esse verso revela certo tormento do eu lÃrico em constante conflito com a poesia. Mesmo com esse caráter repressivo do surgimento da civilização, Eros teve um desempenho fundamental em tal surgimento. No processo civilizatório, Eros tem o papel de equilibrar a agressividade dos homens contra si mesmos e contra a constituição da civilização. Tal equilÃbrio consiste no que se entende por sentimento de culpa: o aumento da culpabilidade dá base à s restrições necessárias ao surgimento da civilização. Mas Eros tem, ainda, a caracterÃstica de sublimação, por isso pode se tornar uma função contraditória: enquanto a pulsão de vida trabalha em favor da civilização, pode ser que sua atividade envolva sua dessexualização, levando ao seu enfraquecimento. Além da origem da civilização repressiva, convém salientar o surgimento do homem reprimido. Primeiramente, as estruturas psÃquicas fundamentais que o formam. Id, ego e superego são os nomes dados à s estruturas mentais centrais que constituem o homem. Campo do inconsciente, o id abriga fantasias e desejos, mas não a moral e a ética. Grosso modo, não há certo e errado. Tudo é livre. Por isso não é afetado pelo tempo nem pelas contradições: não importam valores e moralidade. A preocupação é, não com a autopreservação, mas com a satisfação das pulsões. O id se liga diretamente ao princÃpio de prazer. Quanto ao ego, é parte do id que se desenvolve para refrear os impulsos provenientes deste: ―É o ‗mediador‘ entre o id e o mundo externo‖;106 relaciona-se com o mundo externo, 105 M A RC U SE , 1999, p. 134. 106 M A RC U SE , 1999, p. 47. 48 ajusta e altera a realidade segundo seus interesses. Essa estrutura objetiva proteger o id e reprimi-lo, coordenar e alterar suas pulsões discordantes da realidade: tudo para evitar o aniquilamento social que poderia haver se o homem fosse regido pelo id. Desprovido da ética, da moral e imune à repressão do inconsciente, o homem tenderia à regressão ao estágio sub- histórico: o da gratificação integral de suas pulsões. Eis por que se diz que o ego substitui o princÃpio de prazer pelo princÃpio de realidade. Como estrutura mental, o superego se caracteriza, sobretudo, pela repressão e dá origem ao que Freud definiu como ―sentimento de culpa‖: a necessidade de autopunição. Graças a essa caracterÃstica repressora, o superego impõe a moral, determinando o que é certo e o que não é. Nas palavras de Marcuse, ―[...] o superego assimila os modelos autoritários [...] e faz das suas ordens e das suas proibições as suas próprias leis, a sua própria consciência moral‖.107 Essas observações sobre civilização, repressão e estruturas psÃquicas abrem caminho para abordar a forma como o poeta se determina na sociedade. No princÃpio de realidade — cabe frisar —, ele estaria condenado à infelicidade; logo, em favor de sua razão, tenderia a ser cada vez mais infeliz, porque está sujeito à s imposições do princÃpio de realidade e nega o princÃpio de prazer. Numa palavra, estaria mais distante de realizar suas pulsões. Todavia, o sujeito lÃrico assume sua miséria, sente-se Ãntegro em sua ―animalidade‖; torna-se criatura entregue ao prazer: Porque eu sou o sedutor, se seduzido, e o erótico, se seviciado E o amante, se querido, e o perdido, se privilegiado. Porque fazemos um — eu e a mulher — e não há dois arrependimentos Para um só corpo — nem duas salvações para um só sentimento. ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖ deixa entrever uma luta entre o eu poético e a sociedade existente, como se pode inferir destes versos: Fui buscado, também. Buscou-me a sociedade, o anfitrião E eu fui mendigo em meu salão e me desprezei e disse não. E me mandaram a Oxford, e eu disse não, e vi jovens viscondes Que temeram meu pudor, e eu disse não, e me persigno! Parte do conflito, o humano inconstante faz sinal da cruz para se purificar de maus pensamentos e más palavras. Não busca se reconciliar com a sociedade; antes, nega a condição de poder estar ―equilibrado socialmente‖. Tal qual sua arte, ele é degradado, pois se funde com sua poesia. Numa sequência de aforismos opostos, Vinicius de Moraes e são 107 M A RC U SE , 1969, p. 105. 49 Francisco de Assis se interpenetram para divulgar suas mensagens. Como num tipo de ritual, o poeta age com capacidade manifesta de compartilhar experiências tanto com uma força oculta — atingida pela voz confessional — quanto com o leitor. Como ponte, a ode desperta personagens interiores que dialogam: Este é o que peca e não se arrepende, o supliciador e o criador do espasmo E que te exalta irmão humilde e louco, confidente, e inventor do êxtase. Uma aproximação entre o sagrado e o profano parece se evidenciar: Em vão te direi — ou não? — porque não vens beber meu vinho Na minha mesa, e poderÃamos falar com mais carinho. Humanidade e Santidade se fundem no mesmo ser. Daà se poder cogitar interpretativamente, por exemplo, uma travessura libertária e o exercÃcio do prazer; o exercÃcio de ações proibidas e condenadas pela moralidade cristã. Como a experiência existencial com a religiosidade marca a obra de Vinicius de Moraes, vemos aà outra chave para os enigmas do ser, a espiritualidade, no sentido dos ―orgasmos cósmicos‖. Eis que converti meu demônio a mim e meu anjo a mim E me sinto demais em mim mesmo e quisera me despedaçar em ti. Nesses versos, o ato de sacrifÃcio vem abrir comportas ao estado da alma em que os sentidos se desprendem das coisas materiais e são absorvidos pelo encanto e pela contemplação interior da união mÃstica. Em suas noites de êxtase poético, assim como o estado de inspiração e entusiasmo religioso, o poeta ―[...] estimulou os sentidos apenas para que conhecêssemos o erotismo espiritual vivido pela alma mÃstica que abandona a vida sensÃvel‖.108 Sua criação faz-se possessão: a descrição do êxtase se faz como estágio divino e irrevelável do ato de criação: Tudo é magia! Lembras-te? O silêncio fantástico das noites A alma bêbada de emoção? e nenhum pouso. 108 SPI TZER , Leo. Três poemas sobre o êxtase: John Donne, San Juan de La Cruz, Richard Wagner. São Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 77. 50 Em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, a voz confessional do eu lÃrico simboliza o homem que está sempre à procura de explicações para questões existenciais: de onde veio? Quem é? Como se salvar? Para onde vai? Para responder a essas questões, uma entidade se manifesta em seus sonhos: o sujeito lÃrico em análise se volta a um ser superior para encontrar seu caminho na vida: Francisco de Assis, o divino e humano — e humilde, como a poesia. Aqui, sobretudo Vinicius se volta ao Santo — mediador. Como num ato de remissão, o sujeito poético busca alÃvio temporário para seu sofrimento, e não o perdão para seus pecados. Nesse sentido, logo assume a condição de pessoa presente e próxima de quem fala, para se apresentar e se identificar a quem o procura também. Não busca o Deus inescrutável e imperscrutável, por saber que não encontrará respostas para suas aflições. O mito da tragédia de Jó — que nos inspira e fornece subsÃdios para interpretar o discurso poético na obra analisada — revela-se nestes versos da ode: É a mulher, essa que me suporta e que me acaricia E a quem acaricio, e a quem eu rio e que se ri. Não fosse ela, e eu estaria como Job te mentindo, Porque o poeta é a semente da mentira se, no desespero só. Assim — diz Pierre Brunel —, se [...] o mito é uma narrativa em que se expressam nossos furores, nossos terrores, nossos gritos, se é ―uma fábula simbólica que resume um número infinito de situações mais ou menos análogas‖, do Livro de Jó pode-se muito bem dizer que é um relato de potência mÃtica, e, de seu herói desventurado, que é um herói mÃtico: POBRE como JÓ em seu ESTERCO . 109 Considerado como obra-prima da literatura do movimento sapiencial, 110 o Livro de Jó começa com uma narração — em prosa — sobre um ―grande servo‖ de Deus seminômade e muito rico atingido pela desventura após uma aposta entre Deus e Satã para ver se continuaria fiel no infortúnio. Jó perdeu bens e filhos. Ferido em sua carne pela lepra — doença asquerosa e penosa —, restou-lhe a esposa, que o aconselha a amaldiçoar a Deus. Os amigos de Jó Elifaz, Baldad e Sofar vêm consolá-lo. Após o discurso preliminar, abre-se um extenso diálogo poético no qual os três amigos que deveriam confortá-lo, na verdade, 109 BR U N E L , Pierre. Dicionário de mitos literários. BrasÃlia: ed. UnB, 1988, p. 524. 110 Referente à sabedoria divina. 51 [...] defendem a tese tradicional das retribuições terrestres: se Jó sofre é porque pecou; pode parecer justo a seus próprios olhos, mas não o é aos olhos de Deus. Diante dos protestos de inocência de Jó, só sabem radicalizar sua posição. A essas considerações teóricas, Jó contrapõe sua experiência dolorosa e as injustiças de que o mundo está cheio. 111 Moshe Greemberg, no capÃtulo intitulado ―Jó‖ do livro Guia literário da BÃblia,112 afirma que o personagem é porta-voz de todos os miseráveis da terra. Ao analisar a temática do livro, ele usa uma linguagem carregada de termos jurÃdicos que parecem situar Jó, Deus e o Diabo num tribunal, onde Deus exibe desnecessária e assombrosamente sua força. Como figura indispensável da miséria humana, Jó se impõe a nós como um ―existente‖ exemplar em quem nos identificamos. Jó é Jó em cada um de nós, quando nos sentimos arrasados, vÃtimas de um Deus injusto. Não é, pois, de admirar que assistamos ao ressurgimento de uma figura tão dolorosamente expressiva de nossa ―pobreza‖ existencial. Deus se esquece de nós, [...]; sentimo-nos tentados, como Jó, a amaldiçoar nosso nascimento e a denegrir um criador tão pouco responsável por nossa felicidade. 113 Esse ponto de vista está no livro Resposta a Jó, 114 de Jung, para quem Jó é humilhado e se transforma não mais num homem, mas num verme rastejante. Seu Deus não se preocupa com julgamentos morais: tem atributos do bem e do mal, parece ser um deus mais grego que hebraico, que se preocupa, não com a justiça, mas com o poder. Para o poeta de ―A espantosa ode...‖, Deus se apresenta como um ser distante do homem, longe da poesia. Daà sua melancolia em versos como ―Não creio em Deus mas creio em ti — Deus é minha melancolia‖. Em meio a essa torrente de expressão liberta, outra vez encontramos o sentimento religioso de Vinicius, revelado pelo encontro consigo. Trata-se de mais uma experiência existencial cantada pelo poeta, que enfrenta sozinho a sua angústia — imune ao ato de contrição confessional — e a supera ao ir ao encontro do vazio. Saber ouvir sua melodia, sua extensa e densa ode a São Francisco de Assis é exercÃcio complexo, mas necessário para entrar em contato com uma de suas muitas máscaras. Em diálogo com o texto bÃblico do Livro de Jô, deixamos para apreciação versos que dão ao problema a única solução que vislumbrávamos: 111 BÃB LIA de Jerusalém, 2012, p. 800. 112 GR EN B ER G , Moshe. Jó In: Guia literário da BÃblia. São Paulo: ed. U N ESP , 1997. 113 BR U N E L , 1988, p. 528. 114 J U N G , C. G. Resposta a Jó. Trad. pe. dom Matheus Ramalho Rocha. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 52 Deus está longe, e o mal triunfa — Jó tomou a palavra e disse: Ainda hoje minha queixa é uma revolta; minha mão comprime o meu gemido. Oxalá soubesse como encontrá-lo, como chegar à sua morada. Exporia diante dele a minha causa, com minha boca cheia de argumentos. Gostaria de saber com que palavras iria responder-me e ouvir o que teria para me dizer Usaria ele de violência ao pleitear comigo? Não, bastaria que me desse atenção. [...] Mas, se for ao oriente, não está ali; ao ocidente, não o encontro. Quando ele age no norte, eu não o vejo; se me volto para o meio-dia, ele permanece invisÃvel. [...] Mas ele decide; quem poderá dissuadi-lo? Tudo o que ele quer, ele o faz. [...] Deus abateu-me o ânimo, Shaddai encheu-me de terror. E, todavia, não me dou por vencido por estas trevas; ele, porém, cobriu-me o rosto com a escuridão. 115 É provável que uma compreensão mais sólida e com mais propriedade não só do poema aqui analisado, mas ainda da obra de Vinicius de Moraes possa se beneficiar de uma perspectiva que busque a evolução de sua poética. Talvez com base nesta se possa entender minimamente a preocupação, os conflitos e as resoluções experimentados pelo artista que manifestou sua angústia religiosa. Vejamos! 115 BÃB LIA de Jerusalém, 2012, p. 830–1. 53 Entre o céu e a terra, a lÃrica inicial e a Espantosa Ode Em 1933, o poeta Vinicius de Moraes, bacharel em Letras, formou-se em Direito e concluiu o curso de Oficial da Reserva. Uma vez oficial e bacharel (das letras e das leis), não se alinhou aos intelectuais — ou então teria se engajado na poesia panfletária do pós-guerra — nem aos vanguardistas — afinal, empolgava com a literatura que não só a nova. Também nesse ano publicou seu primeiro livro: O caminho para a distância, inÃcio de sua lÃrica em volume. Nela, o artista latente em Vinicius elabora uma poesia cuja temática diverge daquela consolidada pelos modernistas: sua composição foge à realidade concreta e circundante, pois o poeta buscou sondar os mistérios do infinito. Como disse Antonio Candido, os primeiros livros ―[...] são afogados no longo verso retórico usado pelos poetas cristãos daquele tempo, com uma vontade quase cansativa de espichar o assunto e um certo complexo de antena, ou seja, o esforço de captar algo misterioso, fora de órbita normal‖.116 No dizer de Bandeira, Vinicius de Moraes ―[...] tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perÃcia dos parnasianos (sem refugar, como estes as sutilezas barrocas), e finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos‖.117 Para começar, convém considerar alguns poemas passÃveis de ser tomados como produção que se distingue estilÃstica e poético-discursivamente de ―A espantosa ode...‖. Aà se incluem ―InatingÃvel‖, ―SacrifÃcio‖, ―MÃstico‖ e ―Purificação‖, poemas tomados como alternativa de diálogo com Deus e de autocompreensão. O eu poético busca observar as manifestações de Deus; ao contemplar a natureza, entende sua essência. A experiência mÃstica do sujeito lÃrico resulta do exercÃcio para alcançar a graça divina, que se confunde com o encontro de uma concepção clara de uma realidade. Desvela-se a natureza sagrada pela atitude contemplativa. O poeta idealiza a paz junto à presença divina em imagens de ação, contemplação e adoração. Versos de ―Purificação‖ parecem sugerir isso: Senhor, logo que eu vi a natureza As lágrimas secaram. Os meus olhos pousados na contemplação Viveram o milagre de luz que explodia no céu. Eu caminhei, Senhor. Com as mãos espalmadas eu caminhei para a massa de seiva Eu, Senhor, pobre massa sem seiva Eu caminhei. Nem senti a derrota tremenda 116 C A N D ID O , Antonio. ―Vinicius de Moraes‖. In: M O R A ES , Vinicius. Poesia completa e prosa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 113. 117 BA N D EIR A , Manuel. ―Coisa alóvena, ebaente‖. In: M O R A ES , 1998, p. 80. 54 Do que era mau em mim. A luz cresceu, cresceu interiormente E toda me envolveu. A ti, Senhor, gritei que estava puro E na natureza ouvi a tua voz. Pássaros cantaram no céu Eu olhei para o céu e cantei e cantei. Senti a alegria da vida Que vivia nas flores pequenas Senti a beleza da vida Que morava na luz e morava no céu E cantei e cantei. A minha voz subiu até ti, Senhor E tu me deste a paz. Eu te peço, Senhor Guarda meu coração no teu coração Que ele é puro e simples. Guarda a minha alma na tua alma Que ela é bela, Senhor. Guarda o meu espÃrito no teu espÃrito Porque ele é a minha luz E porque só a ti ele exalta e ama. Como um canto de louvor, estrutura-se a obra em verso, identificando-se ao saltério bÃblico. 118 Sua composição uniforme começa com louvores a Deus e exprime uma prece; o eu lÃrico descreve os motivos do louvor elucidando as maravilhas realizadas por Ele na natureza, sobretudo sua obra criadora. A contemplação da natureza possibilita-lhe o contato com Deus. Animais e plantas são formas passÃveis de compor uma hierofania, de manifestar uma experiência do sagrado. 119 Na dicotomia entre sagrado e profano — cabe frisar — está o que define e representa o sagrado, pois em qualquer religião coexistem objetos e seres sagrados opostos a objetos e seres profanos. 120 O olhar sobre a natureza como extensão da criação divina contrasta com o sentimento do pecado, que é um fardo para o ser humano, a ―massa sem seiva‖. Interiormente perdido, o poeta encontra a paz nas formas exteriores que refletem a presença divina, particularmente na salvação concedida ao sujeito poético. Portanto, pássaros e flores, beleza e alegria da natureza: tudo retrata a força sublime de Deus. Ao apresentar as louvações pretendidas, o sujeito de enunciação lÃrica figura como um ser iluminado, alguém que busca recompor um tempo mÃtico e que manifesta sua voz de homem digno como se estivesse orando. Reconhecer-se merecedor do perdão divino faz do ―eu lÃrico‖ um ser consciente da eficácia de sua voz, ou da potência de sua condição. Em 118 Saltério é o nome dado à coleção dos 150 salmos. A palavra deriva do grego psaltérion, que designa o instrumento de cordas que acompanhava os cânticos (salmos). BÃB LIA de Jerusalém, 2012, p. 858. 119 ELIA D E , Mircea. Tratado de historia de las religiones. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1974, p. 23. 120 ELIA D E , 1974, p. 23. 55 contrapartida, o sujeito poético pode anunciar sua súplica ao questionar o vigor da fala humana dirigida a Deus e a impossibilidade de respostas. Isso pode ser inferido do poema ―InatingÃvel‖: O que sou eu, gritei um dia para o infinito E o meu grito subiu, subiu sempre Até se diluir na distância. Um pássaro no alto planou vôo E mergulhou no espaço. Eu segui porque tinha que seguir Com as mãos na boca, em concha Gritando para o infinito a minha dúvida. Mas a noite espiava a minha dúvida E eu me deitei à beira do caminho Vendo o vulto dos outros que passavam Na esperança da aurora. Eu continuo à beira do caminho Vendo a luz do infinito Que responde ao peregrino a imensa dúvida. Eu estou moribundo à beira do caminho. O dia já passou milhões de vezes Esse aproxima a noite do desfecho. Morrerei gritando a minha ânsia Clamando a crueldade do infinito E os pássaros cantarão quando o dia chegar E eu já hei de estar morto à beira do caminho. Quando o sujeito poético se reconhece como humano — pobre ser que questiona sua realidade —, dá o passo inicial da caminhada mÃstica. Mas o percurso não sugere a derrota do mal que havia nele; antes, as noções de transformação e sobrevivência da alma se relacionam com a concepção de morte. A luz divina emana distante de seu espÃrito, envolvendo-o com a dúvida, e não com a graça de Deus. Cercado dessa forma, o poeta deseja-se guardado pela morte, totalmente unido em ânsia e dor. Talvez por isso haja quem diga que o [...] poema parte da imagem da passagem do tempo, do ciclo entre dias e noites, mas, enquanto outros acreditam e esperam pela aurora, o eu-lÃrico sofre diante da incerteza sobre o sentido de sua existência. Tomado de angústia, acelera a percepção do fluir dos dias, prevendo um trágico fim, envolto na ignorância e no medo. Destaca-se ainda a marcante presença do eu-lÃrico nestes versos, seu tom confessional, e o franco diálogo que estabelece com o ―infinito‖.121 121 SA N TO S , 2007, p. 36. 56 No poema ―SacrifÃcio‖, versos longos são revestidos da forma narrativa. O eu poético procura comover a Deus descrevendo, por meio da rogativa, sua situação — triste — de suplicante com metáforas: fala-se do homem arrojado, destemido, que não foge à morte, ao monstro, ao pavor. Como um grito da alma, a voz lÃrica assume o sentido litúrgico do texto bÃblico ao apelar em prol do sacrifÃcio que redime e da morte que edifica o EspÃrito. O sacrifÃcio — diz Turchi — ―[...] faz parte da história da humanidade como sÃmbolo de perdão e redenção‖.122 Vejamos a composição lÃrica: Num instante foi o sangue, o horror, a morte na lama do chão. — Segue, disse a voz. E o homem seguiu, impávido Pisando o sangue do chão, vibrando, na luta. No ódio do monstro que vinha Abatendo com o peito a miséria que vivia na terra O homem sentiu a própria grandeza E gritou que o heroÃsmo é das almas incompreendidas. Ele avançou. Com o fogo da luta no olhar ele avançou sozinho. As únicas estrelas que restavam no céu Desapareceram ofuscadas ao brilho fictÃcio da lua. O homem sozinho, abandonado na treva Gritou que a treva é das almas traÃdas E que o sacrifÃcio é a luz que redime. Ele avançou. Sem temer ele olhou a morte que vinha E viu na morte o sentido da vitória do EspÃrito. No horror do choque tremendo Aberto em feridas o peito O homem gritou que a traição é da alma covarde E que o forte que luta é como o raio que fere E que deixa no espaço o estrondo da sua vinda. No sangue e na lama O corpo sem vida tombou. Mas nos olhos do homem caÃdo Havia ainda a luz do sacrifÃcio que redime E no grande EspÃrito que adejava o mar e o monte Mil vozes clamavam que a vitória do homem forte tombado na luta Era o novo Evangelho para o homem da paz que lavra no campo. No poeta religioso, o heroÃsmo e o terror da queda convivem, o desassossego de se saber mortal leva ao medo das trevas em vida e ao estranhamento no sujeito poético, que se sente inadaptado ao espaço terreno. A figura daquele que devaneia traduz a angústia do pecador, revelando-se um herói solitário no combate à mácula e dramático ao perceber 122 TU R C HI , Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. BrasÃlia: ed. UnB, 2003, p. 226. 57 que a purgação das faltas ocorre em vida. Seria ele não só o destinado a cumprir um fado, mas também o amaldiçoado que só o sacrifÃcio em vida poderá salvar. O sofrimento do corpo surge como condição essencial para que a santidade se estabeleça como exemplo do indivÃduo que supera sua condição limitada e ascende ao território dos imortais e da poderosa divindade. Contudo, o poema ―MÃstico‖ — parece-nos — contém, dentre outros elementos, o relato de uma experiência mÃstica. O encontro do sujeito poético com Deus é, na verdade, não só culminância, mas também o elemento central do êxtase sagrado. Persiste o idealismo do poeta religioso, que deseja unir-se ao Divino. No anseio de conservar-se no Eterno, o ―eu lÃrico‖ faz da palavra poética seu instrumento de posse. A composição torna - se o espaço propÃcio para o entendermos como mÃstico, sobretudo por conta da natureza do encontro. Como definiu Keller, ―[...] textos mÃsticos são textos que discutem o caminho em direção à realização do mais elevado dos conhecimentos que cada religião em particular tem a oferecer e que contém princÃpios sobre a natureza desse conhecimento‖.123 O mistério fundamenta-se nos diálogos entre o finito e o infinito, do qual emergem o sentimento do inefável, as impressões subjetivas profundas e a sensação de transcendência. Além, é claro, da experiência do numinoso, das verdades impenetráveis à razão humana e impostas como artigo de fé. Para Santos, os termos ―céu‖ e ―chão‖, ―mundo‖ e ―divindade‖ empregados nos dÃsticos ―[...] não se colocam em direções opostas, mas conjugam-se num mesmo movimento. O sujeito lÃrico não mais se ‗desespera‘, mas vivencia a beleza e a paz neste universo formado de dualidades mas essencialmente uno‖.124 Vejamos o poema ―MÃstico‖: O ar está cheio de murmúrios misteriosos E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização... Tudo está cheio de ruÃdos sonolentos Que vêm do céu, que vêm do chão E que esmagam o infinito do meu desespero. Através do tenuÃssimo de névoa que o céu cobre Eu sinto a luz desesperadamente Bater no fosco da bruma que a suspende. As grandes nuvens brancas e paradas — Suspensas e paradas Como aves solÃcitas de luz — Ritmam interiormente o movimento da luz: 123 KE LLER , Carl. Mystical Literature. In: KA TZ , Steven L. (ed.). Mysticism and Philo-sophical analysis. New York: Oxford, 1978, p. 77. 124 SA N TO S , 2007, p. 42. 58 Dão ao lago do céu A beleza plácida dos grandes blocos de gelo. No olhar aberto que eu ponho nas coisas do alto Há todo um amor à divindade. No coração aberto que eu tenho para as coisas do alto Há todo um amor ao mundo. No espÃrito que eu tenho embebido das coisas do alto Há toda uma compreensão. Almas que povoais o caminho de luz Que, longas, passeais nas noites lindas Que andais suspensas a caminhar no sentido da luz O que buscais, almas irmãs da minha? Por que vos arrastais dentro da noite murmurosa Com os vossos braços longos em atitude de êxtase? Vedes alguma coisa Que esta luz me ofusca esconde à minha visão? Sentis alguma coisa Que eu não sinta talvez? Por que as vossas mãos de nuvem e névoa Se espalmam na suprema adoração? É o castigo, talvez? Eu já de há muito tempo vos espio Na vossa estranha caminhada. Como quisera estar entre o vosso cortejo Para viver entre vós a minha vida humana... Talvez, unido a vós, solto por entre vós Eu pudesse quebrar os grilhões que vos prendem... Sou bem melhor que vós, almas acorrentadas Porque eu também estou acorrentado E nem vos passa, talvez, a idéia do auxÃlio. Eu estou acorrentado à noite murmurosa E não me libertais... Sou bem melhor que vós, almas cheias de humildade. Solta ao mundo, a minha alma jamais irá viver convosco. Eu sei que ela já tem o seu lugar Bem junto ao trono da divindade Para a verdadeira adoração. Tem o lugar dos escolhidos Dos que sofreram, dos que viveram e dos que compreenderam. A diminuição do distanciamento entre esses pólos — o sagrado e o humano — e o amor à divindade e ao mundo são capazes de transformar o sujeito lÃrico e minar as fronteiras diurnas, possibilitando instalar a complementaridade e a evidência das semelhanças: caracterÃsticas tÃpicas do noturno mÃstico. A alusão à s coisas do alto supõe uma subida ao céu 59 pelo exercÃcio da ascese. Alto, sublime e infinito, o céu constitui, então, uma hierofania do sagrado por excelência; 125 logo, contemplá-lo seria a senda para que a alma do sujeito poético chegue à graça divina. O simbolismo da transcendência da abóbada celeste em sua altura sem limites posiciona o iluminado de modo superior; isto é, diferencia-o de almas irmãs da sua. A construção das imagens presentes nos tÃtulos alegórico-religiosos analisados remete ao contraste entre o regime diurno — vingador — e o noturno mÃstico — conciliador, pai das similitudes. Em sua As estruturas antropológicas do imaginário, Gilbert Durand propõe um modelo baseado em dois regimes dissimilares e complementares da imaginação humana. A um chamou de regime diurno — é o que ―[...] define-se, portanto, de uma maneira geral, como o regime da antÃtese‖;126 a outro, de regime noturno, que ―[...] estará constantemente sob o signo da conversão e do eufemismo‖.127 No regime diurno, está a estrutura heróica: a luta e sÃmbolos como o da vitória sobre o destino e o fim. Em uma antÃtese da morte, sobressai-se a figura do herói, que com suas armas vence a escuridão, ressurge e transporta-se para o céu numinoso como uma teleologia ascensional. Segundo Zaira Turchi, o herói ―[...] manifesta-se por antÃtese polêmica que põe em evidência os princÃpios de exclusão em relação aos outros e de identidade em relação a si mesmo‖.128 Quanto ao regime noturno, é dividido em uma estrutura mÃstica — que ao converter e suavizar a morte harmoniza e evita a polêmica com a quietude e o gozo — e uma sintética — que concilia o desejo de devir com o eterno retorno. Aà se evidencia a integração da atitude trágica com a triunfante, convertendo-as em uma concepção dramática. Para diferenciar ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, o poeta involui na linha religiosa: desobedece ao bom tom para falar de Deus, isto é, de maneira contida e bem comportada, como pregavam os bons costumes propostos por sua lÃrica inicial. Quando Vinicius de Moraes se refugia no diálogo com São Francisco de Assis, no poema-ode dos anos 1938 e 1939, por um lado fugia de seu enquadramento em uma linha evolutiva da poesia mÃstica de 1933, por outro reforçava a tese de que não havia linearidade em suas produções. Assim, antes de ser vista como incoerência artÃstica, a variedade de estilos do poeta que devaneia pode ser interpretada como vestÃgio da impossibilidade de enquadrar a ode do compositor de versos em uma vertente só — digamos, a não religiosa. Portanto, classificar e delimitar sua obra é operação arriscada e vacilante, pois nas entrelinhas da matéria dos 125 ELIA D E , 1974, p. 137–8. 126 D U R A N D , Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arqueologia geral. Trad. de Heldér Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 67. 127 D U R A N D , 1997, p. 197. 128 TU R C HI , 2003, p. 224. 60 dÃsticos há referência ao mistério das coisas sagradas, as quais envolvem a razão oculta e incompreensÃvel do sublime. Contudo, essa contradição coerente em sua obra não é desconhecida, pois supõe uma passagem de território: da dimensão divina para a materialização da espiritualidade. A trajetória poética de Vinicius se revela, assim, desde o inÃcio, como uma peregrinação extensa e múltipla. Se, no inÃcio de sua carreira, ele namora o misticismo e a metafÃsica simbólica como vimos em O caminho para a distância, em seguida irá flertar com as metáforas do amor sensual e erótico: é a hora e a vez do poeta da paixão.129 Como se pode deduzir, a poesia inicial e a ode se alinham tematicamente nos salmos: nas relações entre o homem e o sagrado, que podem variar em anseio, dependência, desespero e exaltação; o que torna a experiência religiosa uma forma contemplativa e emotiva do mistério. O santo, o herói e o poeta No poema-ode, Vinicius de Moraes exprime mediante a meditação o que é extraordinário em são Francisco de Assis ao nos surpreender com uma figura resultante da Ãntima fusão do elemento humano com o elemento sobrenatural. A fim de apresentá-lo tão vivo e tão próximo, de modo que suscitasse em nós a imagem do santo forjada nos moldes da sua concepção pessoal, chega até nós um santo de Assis extravagante, mesmo à luz do ―verdadeiro‖ e antigo Francisco — redescoberto. Assim como o santo é herói, o poeta que devaneia o é. Pleno de incertezas, não é mais o ser invencÃvel do bem e da verdade; marcado por desconstruções visuais e textuais, demonstra sua fraqueza, suas incertezas e sua sensibilidade ante as lutas cotidianas. Muitas vezes, o herói poeta é o anti-herói, tentando conciliar seu mundo imaginário, idÃlico e mÃtico com a luta pela sobrevivência em terrenos hostis: ―[...] quanto mais é espremido e aniquilado, tanto mais se eleva‖.130 São Francisco de Assis é um mito, mas deixa de ser fantasia para nutrir o imaginário cultural e social em uma visão simbiótica de homem, santo e herói; de sÃmbolo emblemático do universo religioso, cujas histórias são bem engendradas e bem articuladas na construção mitopoiética. Em ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, o poeta Vinicius e o santo Francisco se apresentam como em um espetáculo de identificações projetivas do espectador com seus heróis, pois — como comenta Morin — ―[...] o homem sempre projetou em 129 PER EIR A , K. M. A. Narrativas mitológicas e tradições judaicas: o mito do judeu errante na poesia de VinÃcius de Moraes. Revista Vértices, v. 12, p. 95–108, 2012, p. 10. 130 TU R C HI , 2003, p. 226. 61 imagens seus desejos e temores. E projetou sempre na sua própria imagem — em seu duplo — a necessidade de superar a si mesmo na vida e na morte. Este duplo é detentor de poderes mágicos latentes; qualquer duplo é um deus virtual‖.131 Dessa forma justifica-se o sucesso da dupla personalidade e da permanência do herói mÃtico, como alimento do imaginário coletivo. Envolto em um mundo extranatural, o herói é o sÃmbolo de uma deidade humana no ritual lÃrico e estético do poema-ode. O sujeito poético resgata e reconstrói imaginários mÃticos culturais, que vêm acompanhando a jornada humana desde tempos imemoriais. Nesse sentido, O guerreiro desponta exatamente neste momento da história; o mártir e o guerreiro são duas faces da mesma moeda; o mártir renuncia, enquanto o guerreiro afirma a sua verdade interior, sua fé no ―querer‖; o ato volitivo se impõe e supera o martÃrio, ditando as normas para a ação. Os guerreiros devem ser duros e realistas para exterminar os dragões. 132 Esta revisita e análise de metáforas sobre conflitos existenciais e humanos, sobre vida, morte e além da morte presente em textos do poeta Vinicius de Moraes enaltecem os devaneios do compositor, ocorridos na fronteira entre consciência e inconsciência. A seguir, essa análise enfoca a palavra em ação. 131 M O R IN , Edgar. As estrelas. Mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 67. 132 TU R C HI , 2003, p. 226. 62 C A P à T U L O 3 O caráter de modernidade nos discursos do santo-poeta Essa palavra é, com toda a segurança, essencialmente a da pregação, que, para Francisco, tem como finalidade transmitir as palavras de Jesus Cristo que é a Palavra do Pai e as palavras do EspÃrito Santo que são EspÃrito e Vida (Carta 1 A todos os fiéis). Na Carta 2 A todos os clérigos, Francisco chega mesmo a situar as palavras de Jesus no mesmo plano que seu corpo e seu sangue. — LE GOFF , 2005a. s motivos que levaram o poeta Vinicius de Moraes a escolher o santo Francisco de Assis merecem reflexão porque podem levar a uma compreensão do caráter de modernidade dado aos discursos do santo e do poeta. Tal reflexão parte da premissa de que as obras de um e de outro — precursores de mudanças — podem ser situadas como potencialidade de enfrentamento da dominação social sobre o sentimento religioso, que enraÃza a ideia de unicidade e absoluto. Nessa lógica, há uma idealização da relação entre sacro e humano que justifica a tendência ao não entorpecimento com as noções de abandono completo dos temas transcendentais e à não interdição de uma resistência conservadora. A base para essa reflexão é a forma como ambos usam a palavra na condição de meio para transformar a sociedade de seu tempo. Segundo Bauman, 133 o conceito de modernidade se liga à ideia de razão como uma função primitiva da humanidade, criadora e redentora dos seres. Quando a percepção de modernidade começou a se manifestar, a razão seria capaz de cunhar um mundo sempre melhor, sempre progredindo rumo ao mais eficaz, mais necessário e mais positivo. A razão nesse contexto moderno associava-se não só à ideia de ordem, como também à de técnica. Nesse momento, a ideia de razão — cabe afirmar — relacionava-se, ainda, com a ideia de cura, de formatação do antigo e de concepção do novo sempre para ordenar e efetivar. Na modernidade, o erro não seria aceito, tampouco o antigo, o tradicional e o apego. O passado era, a priori, uma ideia negativa, pois precisava passar pela cura do processo racional. 133 BA U M A N , Zygmut. Liquid modernity. Polity, 1 edition, June 16, 2001. O 63 [...] a modernidade era tida como um processo social, econômico, polÃtico e cultural amplo que ao longo de sua marcha histórica derretia todos os sólidos existentes. O grupo de parentesco, a comunidade tradicional fechada e isolada, os laços e obrigações sociais fundados na afetividade e na tradição, a religião, dentre outros, foram, de certa forma, ―derretidos‖ pelo progresso moderno.134 No dizer de Bauman, controle e categorização foram dois movimentos recorrentes e complementares na concepção de modernidade. Controlar era o exercÃcio máximo da razão: modificar a todos e o todo para haver ―melhoria‖, seja esta necessária ou não. Parece ser plausÃvel o entendimento da ideia de melhoria como controle, afinal não se questionava a necessidade de melhorar. É pressuposto próprio da modernidade que qualquer melhora devesse ser feita, daà a ideia de controle. Não só o controle imprimia uma ideia de exercÃcio máximo da razão, como também o ato de categorizar, dissecar e dividir. Conhecer o objeto era nesse momento talvez até destruÃ-lo. Supostamente era impossÃvel compreender o todo sem dividi-lo, pois na permanência de um estado natural das coisas não havia controle; logo, era preciso eliminar o imprevisÃvel. Bauman, 135 porém, afirma que a modernidade não é só repressão, domÃnio e controle. Em especial pela ideia de globalização, ela trouxe certa unificação do mundo, uma disposição fundamental para que outros projetos tivessem sucesso, a exemplo do capitalismo; o Estado- Nação e a ciência se consolidaram de vez: a função estatal, mediante avanços no conceito de democracia, cuja legitimidade após algumas décadas — já no contexto do que se chama de pós-modernidade — começou a se abalar; a ciência, embora rejeitasse inicialmente a ideia de diferença — consolidou-se mediante a racionalização do pensamento, a qual resultou em avanços que, embora tenham sido (res)significados, permanecem como relevantes. O mérito de Bauman ao conceituar esse instituto — a modernidade — como algo sólido foi implantar uma ideia de fluidez em oposição à ideia de ruptura que outros concebem quando discutem esses dois momentos. A modernidade sólida seria quase um requisito, um construir, um clÃmax da ideia de modernidade lÃquida — ou pós-modernidade. Estão uma para outra como passagem, como espelho onde se identificam caracterÃsticas que visam antagonizar. Progresso e ordem versus descontrole e relativismo. E esse conceito de modernidade cabe aqui — esperamos que sem incorrer em anacronismos — porque 134 FR A GO SO , Thiago. Modernidade lÃquida e liberdade consumidora: o pensamento crÃtico de Zygmunt Bauman. Revista Perspectivas Sociais, v. 1, 2011, p. 109. 135 M O C ELLIM , Alan. Simmel e Bauman: modernidade e individualização. EmTese, v. 4, n. 1 (1), ago./dez. 2007, p. 101–18, ISSN 1806-5023. 64 fundamenta o que historiadores do fim do século XIX e do século XX exaltaram: ―[...] a modernidade de São Francisco, iniciador do Renascimento e do mundo moderno‖.136 No contraste entre o domÃnio da Igreja e a proposta de renovação religiosa no fim do século XII, as cruzadas 137 contra os adeptos das doutrinas heréticas dos cátaros 138 ameaçavam a autoridade e hierarquia eclesiástica. Inocêncio I I I vê a Igreja assaltada por bandos de inimigos [...], a excomunhão e o anátema, aqueles hereges que pululam — os Pobres de Lyon, transformados em valdenses, e aqueles Umiliati, submetidos à obediência apenas parcialmente, até aqueles cátaros, aqueles albigenses, contra os quais ele pregou a cruzada e prepara a Inquisição. 139 Também assim se pode ver os anos 1930, contexto histórico da lÃrica inicial de Vinicius de Moraes. Isto é, podemos ver esse perÃodo como marcado pela disputa ideológica, pela expansão dos imperialismos e pela consolidação do capitalismo; sobretudo, marcado por um tremendo desvio de sensibilidade do mundo moderno revelado no fascismo e no nazismo, regimes totalitários que pretenderam controlar pela mera demarcação — o que insultou e feriu identidades com a barbárie — e que, depois, viram-se, felizmente, ante a impossibilidade de controlar as forças sociais de todas as nações. Igualmente, na Idade Média, a guerra da cristandade pelo controle conduzida pela Igreja fomentou a instalação da Inquisição, um dos grandes crimes históricos contra o homem. Assim, Essas realidades do tempo e lugar em que Francisco atingiu a maturidade devem ser levadas em conta a fim de que se possa apreciar integralmente o impacto dele sobre sua própria época, assim como sobre culturas muito diversas, séculos mais tarde. Ter sido italiano natural da Umbria no fim do século XII e inÃcio do XIII, época de grandes realizações e também de monstruosas crueldades, é importante elemento para a avaliação tanto de seu caráter quanto de sua mensagem. 140 136 LE GO F F , 2005a, p. 102. 137 ―Em 1208, o papa Inocêncio III procurou combater os cátaros da única maneira que conhecia: lançando o que ficou conhecido como a Cruzada Albigense, uma guerra na qual a rotina era a brutalidade, o que acabou gerando um sistema de inquisições. Os albigenses eram torturados e queimados em quantidades alarmantes: depois que a Igreja os entregava à s autoridades civis, até mesmo a população em geral observava com tranqüilidade e aprovação os horrÃveis castigos aplicados à queles que eram considerados insuscetÃveis de redenção.‖ SPOTO, Donald. Francisco de Assis: o santo relutante. Tradução de S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 146. 138 Os cátaros são ―[...] seita originada no Oriente Médio e que floresceu por todo o sul da França (onde foram conhecidos como albigenses) e norte da Itália (onde foram chamados patarini). Os cátaros acreditavam que o mundo material e tudo o que era fÃsico haviam sido criados por um deus malévolo, eternamente em combate com o mundo espiritual e transcendente do Deus bondoso; sustentavam, portanto, que Jesus não poderia ter sido um ser humano e sim uma ilusão angélica, um fantasma que somente parecia feito de carne. Justamente por viverem também em absoluta pobreza, acreditavam serem os únicos que seguiam o caminho do pobre e divino (mas não humano) Jesus. Viviam em comunidades, onde levavam existências rigorosas. Condenavam o casamento e qualquer contato entre os sexos, acreditando que a procriação era perversa e pecaminosa por contribuir para que maior número de almas fossem capturadas na malévola carne.‖ SPO TO , 2010, p. 314–5. 139 LE GO FF , 2005b, p. 72–3. 140 SPO TO , 2010, p. 43. 65 No dizer de Le Goff, a modernidade de são Francisco de Assis se vincula, primariamente, a um dado cronológico: o século em que ele viveu, tido como da era moderna; mas não supõe diminuir originalidade e importância dele, apenas ―[...] constatar, como o fez admiravelmente Luigi Salvatorelli, que ele ‗não surgiu como uma árvore mágica no meio de um deserto‘, mas que é o produto de um lugar e de um momento, ‗a Itália comunal em seu apogeu‘‖.141 Medievo: o berço do mundo moderno Ainda que na Antiguidade fosse possÃvel perceber uma oposição forte entre campo e cidade, foi só ao longo da Idade Média que esses termos começaram a designar espaços distintos: a imagem de cidade ligou-se à concepção de civilidade, enquanto o campo se associou à ideia de rusticidade: Os termos relacionados à cidade denotam a educação, a cultura, os bons costumes, a elegância: urbanidade vem do latim urbs; polidez, da polis grega. A Idade Média herda da Antiguidade latina, e reforça esse menosprezo pelo campo, sede do bárbaro, do rústico. Os camponeses são rudes. 142 Na baixa Idade Média, 143 as cidades tornaram-se centros de negócios e trocas. ContribuÃram para isso o comércio marÃtimo e as feiras. O comércio fez as mercadorias circularem, sobretudo entre o norte e o sul da Europa. As feiras tornaram-se espaços não só de venda e troca de mercadorias, mas também de obtenção de informações sobre o que acontecia em outras localidades — tiveram um papel próximo ao da imprensa hoje: fazer as informações circularem. Uma atividade importante na cidade medieval foi a construção civil — sobretudo castelos, igrejas e mosteiros cada vez maiores, em que prevalecia a associação da tipologia fÃsica da construção (forma, materiais e desenho da casa) com o padrão de vida da aristocracia, da burguesia e da monarquia. ―O surgimento da burguesia com seus hábitos de novos-ricos também foi importante, ampliando ainda mais o mercado de construção. Agiu no mesmo sentido a consolidação das monarquias, que resultava numa ampliação e sofisticação de suas cortes‖.144 141 LE GO FF , 2005b, p. 105. 142 LE GO FF , J. Por amor à s cidades. São Paulo: ed. U N ESP , 1998, p. 124. 143 Optamos pela cronologia feita por Hilário Franco Júnior (1994) em A Idade Média: nascimento do Ocidente. Esse autor divide o perÃodo em: 1) primeira Idade Média (princÃpios do século IV a meados do século V II I), caracterizada por três elementos históricos: Roma, os germanos e a Igreja; 2) alta Idade Média (meados do século V II I ao século x), marcada pela expansão territorial cristã, pela consolidação do latim e pela crise do final do perÃodo; 3) Idade Média central (séculos X I– X II I): perÃodo do feudalismo, das Cruzadas e da retomada do comércio; 4) baixa Idade Média (século X IV a meados do século X V I): perÃodo de transição para a modernidade, representada pelos descobrimentos, renascimento, protestantismo e absolutismo. 144 FR A N C O J Ú N IO R , H. A Idade Média: nascimento do Ocidente. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 53. 66 O perÃodo medieval enseja que abordemos, necessariamente, a forma como as relações sociais do trabalho se davam no campo e na cidade. 145 Tal abordagem possibilita refletir sobre as transformações no mundo do trabalho desde então, tendo como ponto de partida a Idade Média. Desta é possÃvel traçar uma linha do tempo que abarque não só as mudanças nas relações trabalhistas, mas também nas condições de vida, nos avanços e nos retrocessos do mercado de trabalho e suas instituições. Isso porque tais relações se desenvolvem — e desenvolveram — tendo como pano de fundo as cidades; isto é, a Excelência na Idade Média: o sucesso do avanço urbano, o dinamismo do movimento religioso, a eclosão de gigantes como Dante (1265–1321) ou Giotto (c. de 1266–1337)... Exceção na Idade Média: a ausência de monarquia, a ausência de uma verdadeira arte gótica; e, principalmente, a fragmentação das cidades, a estrutura estranha das guerras intestinas. 146 ―Tu és a Palavra — a palavra inexistente — a poesia‖147 Cabe notar que, de hábito, são Francisco de Assis cantava o amor (FIG. 2). Em sua harmonia interior, foi um poeta que entoava salmos a fim de transformar conceitos e palavras em cânticos de trovadores. Santo dos poetas e dos artistas, em música poderia manifestar até o que não pudéssemos pensar e sentir. Aos que entendessem sua música, seria possÃvel traduzir a aproximação do passado com o presente, da lástima com o sonho. A paixão do santo-poeta pelo canto o insere entre os comunicadores espontâneos, que pelas orações de louvor manifestavam o sentimento fraterno mÃstico. Exteriorização de louvor poético, seu cântico segue a linha da oração-expressão dirigida a Deus por privilegiar o pulsar mais Ãntimo de seu ser e por seu sentimento religioso. Ele compunha pela e para a glória de Deus, para consolar e edificar o próximo. Recitava e cantava após as pregações para aliviar o coração dos homens e conduzi-los à alegria espiritual. Tinha uma boa nova a dizer e queria ser entendido por todos. 145 ―O avanço das cidades subverte o uso do espaço. Essas novas cidades apresentam uma topografia original, que, exceto em algumas que foram planejadas, pouco tem a ver com as cidades antigas, tanto no que diz respeito aos monumentos como no que diz respeito à s casas, porque a função das cidades mudou. As cidades situavam-se na verdade na interseção de muitas redes rurais. E também formam redes umas com as outras — ou contra as outras. Na Itália, mas também na Alemanha, elas exercem o essencial do poder — uma senhoria — por sistemas de alianças comerciais e polÃticas. Isso é particularmente claro na Itália, onde as cidades fazem oposição ao Império ou ao papa, e até contra os dois.‖ LE GO FF , Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005b, p. 159–60. 146 LE GO FF , 2008, p. 78. 147 Ver 18ª estrofe. M O R A ES , 1993. 67 Do ponto de vista fenomenológico, o ato de rezar adquire uma excepcional importância, porque constitui o momento de expressão do sentimento religioso: é a atualização da experiência religiosa, é a sua concretização aqui e agora em uma ação, em um gesto, em uma palavra que coloca a pessoa diretamente em contato com o divino. Desse ponto de vista, a oração é a verdadeira religião e é, ao mesmo tempo, quase o respiro e o pulso de qualquer experiência religiosa autêntica. 148 FIGU R A 2 — São Francisco de Assis e a melodia celestial, de Frank Cadogan Cowper149 148 Pà D U A , L. P. O humano e o fenômeno religioso. Rio de Janeiro: ed. PU C -Rio, 2010, p. 97. 149 Fonte: PA IN TIN G PA LA C E . Temas. Ãngels. DisponÃvel em: <http://www.painting- palace.com/es/paintings/13143>. Acesso em: Nov. 2013. 68 O poeta da contemplação e ação compôs versos dÃsticos que representam a concepção de vida, como um epÃlogo de sua existência, um resumo de uma pregação impressa em seu coração lançada ao papel: ―O cântico do irmão Sol‖.150 Composição poética de versos curtos, é dividida em estrofes, para ser cantada por trovadores. É preciso destacar a originalidade desse texto: revela-se um canto novo, polifônico, imanente em harmonia a todas as criaturas. Um agradecimento em louvor contemplativo e espiritual à vida, um gorjeio suave ao Criador. AltÃssimo, onipotente, bom Senhor, Teus são o louvor, a glória, a honra E toda a bênção. Só a ti, AltÃssimo, são devidos; E homem algum é digno De te mencionar. Louvado sejas, meu Senhor, Com todas as tuas criaturas, Especialmente o senhor irmão Sol, Que clareia o dia E com sua luz nos alumia. E ele é belo e radiante Com grande esplendor: De ti, AltÃssimo, é a imagem. Louvado sejas, meu Senhor, Pela irmã Lua e as Estrelas, Que no céu formaste claras E preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, Pelo irmão Vento, Pelo ar, ou nublado Ou sereno, e todo o tempo, Pelo qual à s tuas criaturas dás sustento. Louvado sejas, meu Senhor, Pela irmã Ãgua, Que é mui útil e humilde E preciosa e casta. 150 ―Quase moribundo, compôs São Francisco o Cântico das criaturas. Até ao fim da vida queria ver o mundo inteiro num estado de exaltação e louvor a Deus. No outono de 1225, enfraquecido pelos estigmas e enfermidades, ele se retirou para São Damião. Quase cego, sozinho numa cabana de palha, em estado febril e atormentado pelos ratos, deixou para a humanidade este canto de amor ao Pai de toda a criação. A penúltima estrofe, que exalta o perdão e a paz, foi composta em julho de 1226, no palácio episcopal de Assis, para pôr fim a uma desavença entre o bispo e o prefeito da cidade. Estes poucos versos bastaram para impedir a guerra civil. A última estrofe, que acolhe a morte, foi composta no começo de outubro de 1226. A oração do santo diante do crucifixo de São Damião e o Cântico do sol são as únicas obras de São Francisco escritas em italiano antigo e, por isso, são dos mais importantes documentos literários da linguagem popular. Foi nesta lÃngua que ele certamente ditou a maioria de seus escritos, antes que os irmãos versados em letras os traduzissem para a lÃngua comum da época, o latim.‖ SÃ O FR A N C ISC O D E A SS IS , 1981, p. 70. 69 Louvado sejas, meu Senhor, Pelo irmão Fogo Pelo qual iluminas a noite. E ele é belo e jucundo E vigoroso e forte. Louvado sejas, meu Senhor, Por nossa irmã a mãe Terra, Que nos sustenta e governa, E produz frutos diversos E coloridas flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, Pelos que perdoam por teu amor, E suportam enfermidades e tribulações. Bem-aventurados os que as sustentam em paz, Que por ti, AltÃssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, Por nossa irmã a Morte corporal, Da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal! Felizes os que ela achar Conformes à tua santÃssima vontade, Porque a morte segunda não lhes fará mal! Louvai e bendizei a meu Senhor, E dai-lhe graças, E servi-o com grande humildade. 151 O motivo dominante do cântico é o louvor ao criador para lhe agradecer as criaturas. Ele não é escrito em um momento de excitação sentimental ou inspiração sublime em estado de êxtase mÃstico; ou numa bela manhã de primavera. Mas, como testemunham todas as fontes, sua origem se insere no momento da doença e da tribulação. A voz de São Francisco que emerge da escuridão e dor proclama: 151 Em italiano vernáculo, até a 8ª estrofe, é por si só uma música, entoada pelo menestrel mÃstico de Deus... ―Altissimu onnipotente bom signore,/ Tue so le laude, la gloria e l‘honore et onne benedictione/ Ad te solu, altissimu, se confanno,/ et nullu homo ene dignu te mentovare./ Laudatu si‘, mi signore, cum tucte le tue creature,/ Spetialmente messor lu frate sole,/ Lo quale lu jorno allumeni per nui;/ Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore:/ De te, altissimu, porta significatione./ Laudatu si‘, mi signore, per sora luna e le stelle;/ In celu l‘ai formate clarite et pretiose et belle./ Laudatu si‘, mi signore, per frate ventu,/E per aere et nubilo e sereno et onne tempu,/ Per le quale a le tue creture dà i sustentamentu./ Laudatu si‘, mi signore, per sor acqua,/ La quale è molto utile e humele e pretiosa e casta./ Laudatu si‘, mi signore, per frate focu,/ Per lu quale n‘allumeni la nocte,/ Ed ellu è bellu e jocondu e robostosu e forte...‖ GR IEC O , Agrippino. São Francisco de Assis e a poesia cristã. 2. ed. São Paulo: José Olympio, 1950, p. 18. 70 [...] ao contrário do que ensinavam os cátaros e os albigenses, que a criação era não somente bela, mas também boa. E era boa precisamente por refletir um Criador que era a própria Bondade. Mas de que adiante louvar a Deus? Que necessidade, afinal, terá Deus de nosso louvor? Os Salmos revelam o significado: louvar a Deus é restituir-lhe a Sua obra, é consagrar a Ele tudo o que existe no mundo, utilizando-o de maneira adequada. 152 O cântico é um hino dirigido a Deus cuja beleza se reflete na criação e cuja misericórdia pelo mundo se manifestou na redenção de Cristo. É o salmo franciscano: a poesia de abraço cósmico que Francisco dá ao mundo expressando em nome de toda criatura sua participação fraterna na harmonia universal. Motivado por essa atitude, ele demonstra sua relação amorosa com a criação: obra das mãos de Deus. O Cântico do Sol, que [...] tem o sabor perturbante do vinho da missa, mostra-se-nos um trabalho soberbo de exaltação e de lirismo religioso, sem nada de superior em qualquer literatura. Talvez a mais suave melodia saÃda de lábios humanos, é um viático moral e conservará eterno o perfume do nome de São Francisco. Poema para gente culta e poema em que a alma popular se conhece, revela uma ciência instintiva da música verbal e um grande ardor da humanidade. 153 Sua concepção de sofrimento e morte se resolve no amor. Acolheu ―nossa irmã a Morte corporal‖, cantando e abençoando-a, pois não há receio de que sobrevenha a condenação à s penas eternas logo após a ―segunda morte‖ — o que é terrÃvel. Teologia franciscana da palavra É consensual entre mestres de espiritualidade franciscana que o Poverello de Assis não fundou uma ordem com uma finalidade especÃfica: o objetivo dos frades era viver a vida evangélica no mundo, como Menores, seguindo a pobreza e a humildade de Cristo — secundum formam Sancti Evangelii. É clara a proclamação da Palavra de Deus como missão por excelência dos Menores. Se o santo-poeta esclarece que a proclamação deve dar-se pelo exemplo, isso não exclui a possibilidade da admoestação pela palavra. Passagens de sua vida atestam isso. No capÃtulo 122 da II Vida, escrita por Tomás de Celano, ele exclama: ―O pregador tem que haurir primeiro na oração, feita em segredo, aquilo que depois vai derramar em palavras sagradas‖.154 Deveriam pregar o sacrifÃcio para a expiação dos pecados, como numa espécie de exortação à conversão diferente da pregação com conteúdos doutrinais, reservada aos ministros ordenados. 152 SPO TO , 2010, p. 314–5. 153 GR IEC O , 1950, p. 17. 154 SÃ O FR A N C ISC O D E A SS IS , 1981, p . 402. 71 O filho de Pietro di Bernardone, se passava dias e dias em seu eremitério, passava meses e meses a fazer pregações pela PenÃnsula, correndo as cidades e as aldeias, com uma flor, um ramo de oliveira ou um cruxifixo em punho, doente de amor a tudo e a todos. 155 No inÃcio, os membros da ordem franciscana se enquadravam no tipo de pregação enfática no conteúdo ético-religioso. Com o passar dos anos, a pregação deixou de ser o anúncio simples e direto da ―boa nova‖ para se tornar pregação em sentido doutrinal graças ao ingresso de sacerdotes, intelectuais e pessoas letradas; assim como à expansão para centros urbanos mais desenvolvidos. Isso impôs a necessidade de estudar a teologia sucessivamente em contato com centros escolásticos e universitários, que se expandiam e se impunham na Europa. Cerca de dez anos após a aprovação — em Roma — da Ordem Franciscana, esta já se mostrava diferente: cada vez mais ingressavam homens envolvidos com estudos e universidades, constituindo um processo de intelectualização da ordem que vai interferir no modo como ela presta serviços à Igreja. Atento ao seu desenvolvimento, o papado logo começou a envolver os frades menores nas missões que envolviam pregação, anúncio. Podemos, talvez, justificar o crescimento veloz da ordem franciscana porque a pregação discursiva foi simples e popular. Os franciscanos usavam a linguagem comum para evidenciar o Evangelho e atrair as massas urbanas. Nosso santo-poeta era leigo e sabia pouco de latim; e sabia menos ainda situar passagens bÃblicas corretamente. Por isso, para fundamentar suas regras, contava com o auxÃlio dos companheiros da ordem. No dizer de Grieco, Francisco não era Nada escolástico, teológico ou doutoral, não preparava os seus sermões, não os decorava, improvisando-os familiarmente, em tom de palestra, e, ao falar, sacudia os pés, num jeito muito seu, como para marcar o ritmo da oração, e quase se punha a dançar, à maneira de Davi diante da arca santa. 156 A missão franciscana lançava seus alicerces: pregar, evangelizar, converter e curar os enfermos — este o objetivo central. O papado envolvido no combate as heresias157 fazia um esforço para persuadir os poderes paroquiais de diversos lugares em prol da aceitação dos franciscanos em territórios como Alemanha, Inglaterra, sul da França, Itália e penÃnsula Ibérica. A expansão geográfica na Europa era significativa. Havia diferenças de conteúdos e técnicas de expressão; a pregação voltada à população era proferida no falar local, enquanto a 155 GR IEC O , 1950, p. 7. 156 GR IEC O , 1950, p. 7. 157 A palavra heresia (do grego hairesis, hairen, que significa escolher) acompanhou a vida da Igreja desde seus inÃcios; para escritores eclesiásticos, o termo designava uma doutrina contrária aos princÃpios da fé oficialmente declarada. FA LBE L , N. Heresias medievais. São Paulo: Perspectiva, 1967, p. 13. 72 pregação dirigida ao clero era em latim. Um capÃtulo da Regra Franciscana expunha como os irmãos deveriam proceder ante as missões realizadas, porém fazia uma série de advertências. Por exemplo: em primeiro lugar, os frades deveriam ―dar a Paz‖ em qualquer lugar que chegassem; a paz e a penitência seriam o sinônimo de salvação. Além disso, era obrigação deles serem amáveis, pacÃficos, modestos, mansos e humildes, também falar a todos os irmãos com honestidade; sobretudo, não julgá-los, não litigar nem atacar com palavras. O cuidado com a tarefa evangelizadora está presente na Regula sine bulla, que instituiu as condições da pregação e a forma como os irmãos deviam pronunciar os sermões de pobreza e simplicidade cristã pelo mundo. Para isso, necessitavam ter o consentimento do ministro geral da ordem, sob o controle da Santa Sé. A pregação é um dos pontos fundamentais da regra e é assim evidenciada na Regula non bullata. Nenhum dos irmãos pregue contra a forma e a doutrina da santa Igreja nem sem a permissão de seu ministro. O ministro, porém, tome cuidado de não a conceder indiscriminadamente. No entanto, todos os irmãos podem pregar pelas obras. [...] a todos os meus irmãos que pregam, oram ou trabalham, sejam clérigos ou leigos, que tratem de se humilhar em tudo [...] E estejamos firmemente convencidos de que não temos coisa própria nossa senão os nossos vÃcios e pecados. Antes nos devemos regozijar ―quando cairmos em diversas provações‖ (Tg 1,2) e sofrermos neste mundo na alma e no corpo toda sorte de angústias e tribulações, por causa da vida eterna. 158 Na Regula bullata, a sujeição à inspeção do ministro Geral continuava a ser ressaltada, supostamente em razão do problema das heresias. Não preguem os irmãos na diocese de algum bispo que lho tenha proibido. E nenhum dos irmãos se atreva, de modo algum, a pregar ao povo sem ter sido examinado e aprovado pelo ministro geral desta fraternidade e por ele admitido ao ofÃcio da pregação. Também admoesto e exorto os mesmos irmãos a que, nos sermões que fazem, seja a sua linguagem ponderada e piedosa (cf. Sl 11, 7 e 17, 31), para utilidade e edificação do povo, ao qual anunciem os vÃcios e as virtudes, o castigo e a glória, com brevidade, porque o Senhor, na terra, usou de palavra breve (cf. Rm 9, 28). 159 158 SILVEIRA, Ildefonso; REIS, Orlando. (Org.) São Francisco de Assis. Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 4. ed. Petrópolis: Vozes, CEFEPAL do Brasil, 1986, p. 154. O texto no original está em latim: ―Nullus frater praedicet contra formam et institutionem sanctae ecclesiae et nisi concessum sibi fuerit a ministro suo. Et caveat sibi minister, ne alicui indiscrete concedat. Omnes tamen fratres operibus praedicent. [...] omnes fratres meos praedicatores, oratores, laboratores, tam clericos quam laicos, ut studeant se humiliare in omnibus, Et firmiter sciamus, quia non pertinent ad nos nisi vitia et peccata. Et magis debemus gaudere, cum in tentationes varias incideremus (cfr. Jac l,2) et cum sustineremus quascumque animae vel corporis angustias aut tribulationes in hoc mundo propter vitam aeternam pare de saor‖. 159 SI LV E IR A ; R EI S , 1986 , p. 137. Em latim: ―Fratres non praedicent in episcopatu alicuius episcopi cum ab eo illis fuerit contradictum. Et nullus fratrum populo penitus audeat praedicare, nisi a mi-nistro generali huius fraternitatis fuerit examinatus et approbatus, et ab eo officium sibi praedicationis concessum. Moneo quoque et exhortor eosdem fratres, ut in praedicatione, quam faciunt, sint examinata et casta eorum eloquia (cfr. Ps 11,7; 73 Ante o exposto, temos na regra um conjunto de normas que os frades deviam seguir. O pedido de autorização para as missões e a pregação, além da temática da admoestação, tudo devia ser examinado e ratificado. O ato de pregar não podia ser aleatório e sem um conteúdo ordenado de antemão. Nesse passo, verificamos que a prática inicial, sem artifÃcio e natural, caminhou para um oportuno formalismo, para uma equalização de posturas e propósitos do discurso dos irmãos. A pregação franciscana, monitorada pela Santa Sé, era o anúncio da proposta de pobreza e simplicidade, em sua oferta de novas possibilidades de testemunho cristão para a população das cidades no século XIII. Como mencionamos havia dois tipos de pregação: uma voltada ao clero, outra ao povo. Obviamente, se o público era diverso, as diferenças de conteúdos e técnicas de expressão ocorriam. Por isso, o sermão não podia ser dado por qualquer frade; só pelo que tinha como atributo tal função, condizente com a fala autorizada. O discurso usado pelo Poverello de Assis impôs-se pela eficácia. Foram reconhecidos: a destreza ao falar, sua vestimenta (um fator identificador do grupo), seu pregar e seu escrever. É comum pensar em pobreza e formar na mente a imagem de são Francisco de Assis. Ele não foi o primeiro a renunciar a riqueza, dar aos pobres e viver a mendicidade. Ainda assim, sua imagem eterniza essa ideia no imaginário coletivo, por ser o seu ideal religioso a ―Senhora Pobreza, as Santas Virtudes são de modo semelhante heroÃnas da corte, o santo é um cavaleiro de Deus, dublê de trovador, de jogral‖.160 Francisco deu novo sentido à pobreza: transformou-a em virtude a todos os cristãos, (res)significou algo da tradição cristã, mas estabeleceu um novo valor ao ser pobre, ao viver a pobreza itinerante e ao tomar, por modelo, a vida de Cristo. Em vez de só cantar a pobreza, preferia viver como pobre; em vez de só cantar a caridade, preferia tratar dos leprosos e morrer de frio para ceder sua túnica aos mendigos. Assim, instalou-se uma nova tradição que penetrou em todas as camadas sociais da baixa Idade Média. Frades de classes sociais diferentes vinham associar-se ao renovado ideal: do camponês ao letrado da Universidade de Paris. O amor de Deus o fez se voltar à pobreza do Evangelho, de acordo com o espÃrito da Igreja romana, e lhe fez revelar uma imitação de Cristo tão perfeita, que depois dos apóstolos jamais se viu. 17,31), ad utilitatem et aedificationem populi, anuntiando eis vitia et virtutes, poenam et gloriam cum brevitate sermonis; quia verbum abbreviatum fecit Dominus super terram (cfr.Rom 9, 28)‖. 160 LE GO FF , 2005b, p. 109. 74 Francisco de Assis propôs a criação de uma comunidade que seria caracterizada por um ideal de vivência pobre, com ausência de propriedade, sem provisões, sem dinheiro, com a recusa de cargos e de poder, pregando a pobreza, pedindo esmolas quando necessário, cuidando dos leprosos, sem local fixo, mas vivendo numa fraternidade, universalmente pobre em bens materiais. Assim, a primitiva fraternitas criada por ele transformou a pobreza em virtude e ideal de vida, dando um novo impulso à sociedade cristã, que tanto aspirava por novas formas de religiosidade no século XIII , principalmente por uma participação efetiva na vida religiosa. 161 Tal abnegação poderia conduzir são Francisco ao dualismo espÃrito–matéria: caracterÃstica dos heréticos daquele tempo. Mas sua natureza poética o faz se voltar ainda para a beleza terrena; e sua adoração ao Criador lhe traz à memória a obrigação de admirá-la como obra perfeita de Deus. Não é religioso depreciar a vida para tornar mais fácil a renúncia, mas é difÃcil saber amá-la sem se deixar prender por ela. Ligando-se à pobreza, consegue amar as criaturas, não só com a bem-aventurança de crente, mas também com a alegria de artista, porque o que perturba a contemplação da beleza é a ambição da posse. Em suma, falar em discurso franciscano significa dizer que o poeta Francisco edificou um sermão inédito quando colocou a pobreza e a mendicância na ordem do dia. Ao investigar as diversas hagiografias ou crônicas do século XIII, compreendemos que aquela imagem de Francisco de Assis foi um sÃmbolo construÃdo pela Igreja Católica e pela literatura franciscana. Daà ser difÃcil ao historiador se desatar dele. Assim, se antes havia uma exposição oral que podia criticar a riqueza da Igreja, embora o santo não tenha se proposto a isso, agora esse anúncio foi tragado por ela; e coube aos franciscanos a função salvÃfica para aquela sociedade em crise. São Francisco de Assis, porém, tem uma genialidade de poeta que lhe faz ser amado, senão em virtude da penitência, ao menos pela poesia. Quem não o compreende como santo admira-o como reformador dos costumes e benfeitor dos homens. Eis a pregação renovada nos argumentos, que aderem mais à vida, e na linguagem, que é a do povo. Ele ―[...] louva o riso, a alegria, a Criação, as criaturas. Também recebe os estigmas, reproduzindo em sua carne, nesta terra, as dores do Crucificado‖ 162. Eis o desprezo de si mesmo, a renúncia, a penitência, as virtudes mais aversivas, que reaparecem em toda a sua heróica beleza, através das cores, do amor e da cavalaria. Os que não partilham sua concepção da vida gostariam de participar de sua perfeita alegria. 161 BO N I , Luis Alberto de. De Abelardo a Lutero: Estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: ed. PU C R S , 2003. 162 LE GO FF , 2008, p. 194. 75 A pobreza quer dizer: em vez da primazia à s vantagens econômicas, as duas riquezas celestiais: o amor e a liberdade dos filhos de Deus. Com a amostra dos ―Louvores a Deus‖, procuramos rematar o capÃtulo e demonstrar a permanência de vestÃgios da atmosfera ―angelical‖ envolta do amor à divindade: Vós sois o santo Senhor e Deus único, que operais Maravilhas (Sl 76,15). Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o AltÃssimo. Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do céu e da terra. Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus, vivo e verdadeiro. Vós sois a delÃcia do amor. Vós sois a Sabedoria. Vós sois a Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança. Vós sois o Descanso. Vós sois a Alegria e o Júbilo. Vós sois a Justiça e a Temperança. Vós sois a plenitude da Riqueza. [Vós sois a Beleza. Vós sois a Mansidão. Vós sois o Protetor. Vós sois o Guarda e o defensor. Vós sois a Fortaleza. Vós sois o AlÃvio. Vós sois nossa Esperança. Vós sois nossa Fé. Vós sois nossa inefável Doçura. Vós sois nossa eterna Vida, ó grande e maravilhoso Deus, Senhor onipotente, misericordioso Redentor]. 163 163 ―Este documento, do próprio punho de São Francisco, guarda-se como preciosa relÃquia no Sacro Convento de Assis. Data: outono de 1224. O trecho entre colchetes ficou ilegÃvel no documento original, mas consta na presente formulação em todos os manuscritos antigos.‖ SÃ O FRA N C ISC O D E A SS IS , 1981, p. 72–3. 76 Na estrutura discursiva desse louvor Deus 164 é interlocutor do discurso. A completude e identificação são espirituais, sobretudo quando seu espÃrito livre e evoluÃdo se desvencilha de sentimentos ruins, do desejo do que não teve, para render graças, louvar e bendizer a magistral existência de Deus. O amor divino, livre e sublime não é diferenciado, mas coexistente e complementar. O amor majestoso, porém, só sobrevive e se torna indissolúvel se a liberdade entre os pares para com outros pares existir. Ante nossas considerações, esperamos ter indicado caracterÃsticas do santo-poeta dos artistas as quais transparecem a sua influência para o Poetinha. Ser influenciado não é sinônimo de ser ou estar igual, mas significa transitar, fugir da enquadrável fixidez. Essa existência mutante e tensa é trazida pelo espÃrito renovador da arte. Essa energia fugaz da arte é amostra de vida do ―camaleão Vinicius de Moraes‖.165 164 ―Evoluindo no correr dos séculos, a imagem que os cristãos medievais fazem de Deus nos informa sobre esse duplo movimento de sujeição e de desabrochar. A partir dos séculos X e X I , insiste-se sobre o Deus Filho, que continua sendo o Cristo, eventualmente temÃvel, do JuÃzo. Pouco a pouco se afirmam, porém, as representações numerosas de um Jesus próximo e benevolente. O que não impede aquele Jesus da manhã de Páscoa, manhã primaveril, de ser também o Jesus pobre e sofredor da Paixão. Contraste que seria assumido em seu ponto mais alto por Francisco de Assis.‖ LE GO FF , 2008, p. 193. 165 C A STE LLO , 1994, p. 18. 77 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S Experiência genuÃna na comunhão do indivÃduo com a coletividade Os estudos literários têm como objetivo primeiro o de nos fazer conhecer os instrumentos dos quais se servem. Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivÃduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre as noções crÃticas, tradicionais ou modernas. Na escola não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os crÃticos. — TODOROV , 2009. s últimas considerações dão margem para retomar pontos não só da investigação, mas também da experiência mesma de pesquisar o objeto em questão. No caso deste estudo sobre ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, uma memória do começo do processo se impõe: a de que houve quem acreditasse que o tema seria São Francisco de Assis e sua vida; e não por acaso houve quem me sugerisse escrever uma hagiografia do Poverello de Assis: ―Por que não fazer uma micro-história, tomando-o como pretexto?‖ — perguntavam uns; ―Que novidades você pode acrescentar a um assunto já tão discutido?‖ — indagavam outros. Desde então, foi preciso dedicação para aprender mais e, assim, sustentar o argumento de pesquisa: torná-lo claro; dar-lhe credibilidade acadêmica. Este trabalho não só mostra que o santo não era assunto central, mas também materializa a convicção de que a pesquisa é viável e se justifica. Sobretudo, caso se considere que esse poema não havia sido explorado pela crÃtica literária nem pelos historiadores da literatura brasileira. Portanto, talvez se possa dizer, em tom de sÃntese, que este estudo versa sobre a nÃtida manifestação do olhar inquieto e questionador do herói-poeta em relação ao que acontece com as almas da terra, irmãs das almas das alturas. São olhares que nos orientam à compreensão do mundo real pela contemplação, pelo coração e pelo espÃrito do poeta. A vida terrena o incomoda e para compreendê-la ele busca materializar as ―coisas do alto‖. A 78 Se a falta de estudos prévios sugere uma situação de desespero existencial, não é sem razão. Mas as discussões teórico-conceituais e metodológicas nas disciplinas do mestrado deram o suporte necessário para iniciar a pesquisa documental na certeza de não perder o rumo ante a falta de um caminho das pedras. Do encontro de enfoques — histórico e literário — derivou-se a intenção de, pelo estudo especÃfico das obras de Vinicius de Moraes e de São Francisco de Assis, cruzar olhares sobre o sagrado e o humano. Dessa intenção chegou-se a este estudo das obras — sobretudo do poema-ode —, que mostra ser possÃvel não só refletir sobre a vida do poeta, do compositor, da cultura e da polÃtica nas quais estava imerso, mas também ser uma lente pela qual se pudesse enxergar o propósito do poeta de tentar encontrar respostas a suas dúvidas como ser humano: surgidas da vida terrena, da relação do homem com a morte — esta desconhecida que o poeta sabe que virá um dia para acabar com o mistério. A relação dialógica entre o céu e a terra, o divino e o terreno, Deus e o homem foi percebida segundo estas variáveis: memória, imaginário e representação. Um dos primeiros desafios foi a leitura do discurso poético. Desafio porque à pesquisa subjazia uma crença segundo a qual a arte e a poesia têm uma lógica temporal própria, indecifrável por uma contextualização histórica pré-definida. (E não se pode dizer que tal crença tenha se dissipado por completo.) Eis por que, em vez de apresentar uma versão unificada e delimitada, a intenção foi instigar o leitor a ter contato com o objeto de estudo até então ―inédito‖. A tônica nas obras do Poetinha e no santo incidiu na poética, na qual supostamente se pode apreender, via discurso, questões sentidas pelo homem moderno, por exemplo: a importância da presença de elementos da natureza para o homem, a relação entre o espiritual e o material, a vida e a morte — numa palavra, questões significativas para os sentidos da vida humana no presente. Tomar o santo e o poeta como signos de leitura supõe dar condições a uma percepção que reconheça a temática religiosa na lÃrica de Vinicius de Moraes como fluxo e que enxergue de maneira múltipla o nosso literato, animado por um objetivo artÃstico penetrado de vida e meditação. Enfim, a tentativa de fundir o elemento religioso com o estético buscou não sufocar o elemento sobrenatural com a expressão artÃstica; antes, buscou lhe dar relevo. Como forma de apresentação deste estudo, obedecemos à seguinte estrutura: no primeiro capÃtulo comparamos o discurso da Igreja Católica ao discurso do poeta como ser humano, que representa e questiona o social e a humanidade, quando se apropria livremente dos cânones religiosos. O segundo foi dedicado ao estudo comparado entre o discurso poético da produção lÃrica inicial de Vinicius, chamada ―poesia de primeira fase‖ ou ―poesia mÃstica‖ 79 – que pouca atenção tem recebido por parte da crÃtica – e ―A espantosa ode a São Francisco de Assis‖, como uma produção que se diferencia do ponto de vista do estilo, assim como do discurso poético da sua produção inicial. O terceiro capÃtulo evidenciou o caráter de modernidade assumido pelos discursos do santo, assim como pelos discursos poéticos de Vinicius de Moraes. Buscamos o equilÃbrio entre disciplina e objeto, em que a ideia central seria a literatura que discorre sobre o mundo e o homem, e não só sobre a linguagem propriamente dita, para anular limitações na concepção do que seja literatura: não é só a que diz de si sem manter ligação significativa com o mundo; tampouco é a que diz do mundo — sobretudo do mundano — sem se preocupar consigo. Assim, ao retomarmos a atividade reflexiva teórica a partir da obra literária, tentamos relevar algumas de suas reflexões como instrumento para a produção de sentido. Consideramos assim, o fundamento da apreensão crÃtica de novas concepções — sempre com o suporte indispensável da orientação acadêmica. Buscamos, em nossa proposta de estudo, versar sobre um dos objetivos da literatura: representar a existência humana, que inclui escritores e leitores, os quais se completam numa operação fundamentalmente dialógica. Na ode o poeta que devaneia tem por função uma arte essencialmente criativa, pois há algo da sua experiência que lhe permite compartilhar com o seu ouvinte; e quem tem o contato com o poema-ode deve procurar por si mesmo, interpretando e trazendo para o seu mundo, o significado da confissão dirigida ao santo Francisco. Cabe notar que esse significado não é uma resposta no sentido usual, como um fechamento do texto; antes, é uma procura, assim como as palavras de Vinicius de Moraes não consistem numa resposta, mas em apontar possibilidades. Apresenta algo incompleto que requer a ação intelectual do leitor. De certa forma, por causa disso nosso objeto de estudo nos instiga — por sua incompletude, pela possibilidade de ser renovado em diversos contextos. O artista retira da sua própria experiência o que ele canta. Na leitura, a percepção da experiência se dá, nesse sentido, numa ligação entre o antigo e o novo. Como vimos, a voz do ―eu lÃrico‖ transcende o momento e ressurge de vários modos, o vÃnculo é imediatamente estabelecido entre o poeta e os seus ouvintes ou leitores; logo, temos, por excelência, uma experiência coletiva. Em poucas palavras, talvez possamos concluir que a pesquisa buscou também abordar possibilidades e impossibilidades históricas culturais dos anos 30, assim como da Idade Média. São possibilidades que não permitem um retorno ao seu estado inicial, mas proporcionam olhares sobre a realidade de cada perÃodo. Impossibilidades que criam novas 80 realidades. Assim talvez possamos, finalmente, justificar a noção de devir que constitui o tÃtulo e organiza o desenvolvimento da pesquisa: cada época é composta por uma infinidade de possibilidades, algumas delas irrealizáveis. Ao tomar Vinicius de Moraes e São Francisco de Assis como signos de seus contextos históricos esperamos ter oportunizado a percepção do tempo, da história e da cultura do poeta e do santo, como fluxo, no interior do qual podemos compor os possÃveis das suas épocas. Inclusive os irrealizáveis. 81 Referências BACHELARD , Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BANDEIRA , Manuel. ―Coisa alóvena, ebaente‖. In: MORAES , Vinicius. Poesia completa e prosa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. BAUDELAIRE , Charles. O mau vidraceiro. In: _____. O Spleen de Paris. 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— e te proclamaria? 13 E [...] porque amo a miséria em mim que me deposita em ti Porque não fosse eu sombra não serias sol nem pensarias em [mim. 14 E [...] porque aceito minha depravação e faço a minha [queixa sem piedade E de todos tenho piedade menos de mim — e não há [salvação para minha piedade. 15 Sou digno como o animal nobre que morre em silêncio e [sem lágrimas E não tem limbo ou purgatório, céu ou inferno para a sua [alma. 16 Mas sou impuro como a terra que recebe a consumação da [carne E astuto como o fogo e plástico como a água. 17 Meu são Francisco, ouve o meu voto e compreende o meu [vazio E me aquece do frio, e me protege do sonho sombrio. 18 Tu és a Palavra – a palavra inexistente – a poesia Que eu busco sem tréguas, que busco de noite e que busco [de dia. 19 Não creio em Deus mas creio em ti – Deus é minha 90 [melancolia Tu és minha poesia – ou quando não seja o amor que ela [se deseja. 20 Tenho o lar e tenho o mar, e nada tenho Tenho a emoção – tenho-a? – nem pranto mais blues. 21 Na verdade muitas coisas eu tenho, e muita razão de ser feliz Se não existisses talvez – mas exististe, São Francisco de [Assis! 22 És a infância não vivida, és a mocidade não merecida És tudo de justo feito injusto pela catástrofe da vida. 23 Ninguém o sabe senão tu – nem mesmo eu sei! nesse [momento Meu pensamento é tédio mas amanhã pode ser [contentamento. 24 Porque há em mim uma fonte pura de mal que me embriaga De bem, mas que subitamente me estanca o que me falta. 25 É a mulher, essa que me suporta e que me acaricia E a quem acaricio, e a quem eu rio e que se ri. 26 Não fosse ela, e eu estaria como Job te mentindo, Porque o poeta é a semente da mentira se, no desespero, só. 27 Dou-te meu voto além da mulher! é a criança que te fala Quando subitamente se conheceu menino no grande [silêncio de uma sala. 28 Quando brincando com o próprio sexo o surpreendeu [sensÃvel E o viu inteligente e emocionado e não compreendeu. 29 E que criou sozinho a primeira forma nua para o prazer [contemplativo 91 E que se deu a ela desvairado do mistério de se saber vivo. 30 E que a transportou na memória em amor e que foi traÃdo Pelo toque de outra mão menos pura e mais desmerecida. 31 E que foi seviciado antes do sêmen pela desventura Feito mulher, e a perdoou, e a amou, e a fez sua criatura. 32 E que foi iniciado nos prazeres da carne como o inocente [aprendiz A quem a mulher diz – Faz! e ele faz, tal como eu fiz. 33 Antes do sêmen! e não morri – e bela fiz minha criatura Eis por que não há salvação e eu amo a minha degradação [e impostura. 34 Porque eu sou o sedutor, se seduzido, e o erótico, se [seviciado E o amante, se querido, e o perdido, se privilegiado. 35 Porque fazemos um – eu e a mulher – e não há dois [arrependimentos Para um só corpo – nem duas salvações para um só [sentimento. 36 E se alguém não vem comigo eu não quero ir, porque não [sou sozinho E se eu fosse sozinho não estava nesse momento clamando [de ti. 37 Meu são Francisco de Assis! ouve tu ao menos a minha [inefável miséria Sem perdão e sem consolação e sem fim nos caminhos da [Terra. 38 Ouve o apelo mais Ãntimo, o que não está nas minhas palavras E que está no meu ser infeliz e no ser infeliz que eu crio à [minha passagem. 39 92 O santo, o herói e o poeta – três penitências do mundo Tu, santo, herói e poeta – uma penitência em mim. 40 Nunca te verei no céu, nem nunca me verás no inferno Mas hei de te escutar no estio, e tu me escutarás no inverno. 41 Não me verás no céu porque não há paixão para a serenidade Nem no inferno porque não há castigo para a fatalidade. 42 Mas eu te escutarei aqui na Terra, entre as grandes árvores A cabeça no seio da amiga, e a quem eu falo como ao pássaro. 43 Um dia deixarei a cidade da minha angústia e sua torre E irei a Assis entre colinas me abandonar à tua saudade. 44 E dá-me nesse dia de chorar todas as lágrimas contidas E de me perder em mim o pranto e de me ajoelhar no teu [sepulcro. 45 Ó grande santo louco, meu irmão, taumaturgo em minha [alma Taumaturgo – palavra que contém silêncio e que me acalma! 46 Just now I have been in a [...] party in the Magdalen‘s cloister And there was an Armenian [...] all the others. 47 Good inocent people [...] some liquor in their rooms But was a bloody phantom between them, so help me God! 48 Eu sou o conhecimento perfeito das coisas e dos homens Linchai-me! eu sei todos os segredos, e eu me abandono. 49 Nunca criatura criada foi tão pagã como eu, so help me God! Arrastando meu ser à execração e à contemplação quieta da [morte. 50 Em vão te direi – ou não? – porque não vens beber meu [vinho Na minha mesa, e poderÃamos falar com mais carinho. 93 51 São Francisco de Assis! meu irmão, meu único inimigo No céu, eu te maldigo, eu te bendigo. Eu me persigno! 52 Tive uma jetatura: a mulher; uma aventura: a poesia Uma desventura: a delicadeza. Sou delicado, não peço, [mendigo! 53 Mendigo: mendigo o pão de meus pais, o amor de meus [amigos Mas só a mulher me persegue e só à mulher eu persigo. 54 Santo! tenho gana de te dizer: foge de mim! evita o meu [contato escuro Porque eu sou puro na maldade e puro na sinceridade e [impuro. 55 Quatro livros escrevi – e sou tão moço! e nada [compreendo de mim Senão que sou cruel com a mulher, e que minha angústia não [tem fim. 56 Fui buscado, também. Buscou-me a sociedade, o anfitrião E eu fui mendigo em meu salão e me desprezei e disse não. 57 E me mandaram a Oxford, e eu disse não, e vi jovens [viscondes Que temeram meu pudor, e eu disse não, e me persigno! 58 Tudo é magia! Lembras-te? o silêncio fantástico das noites E a alma bêbada de emoção? e nenhum pouso. 59 Ah, que a vida não tem solução. Muitos o disseram em vão E o direi em vão, e morrerei, e os que me virem, sorrirão. 94 A P Ê N D I C E 2 Ãntegra do ―Cântico do irmão Sol ou das criaturas‖ na obra de LE GOFF, 2005 95 CÂNTICO DO IRMÃO SOL OU DAS CRIATURAS AltÃssimo, todo-poderoso e bom Senhor em teu louvor, glória, honra e toda bênção a ti só essas coisas ó Tu AltÃssimo e nenhum homem é digno de nomeá-lo. Louvado sejas, Senhor, com todas as tuas criaturas especialmente meu senhor irmão Sol através do qual nos dás o dia, a luz ele é belo, irradiando um grande esplendor e de ti, o AltÃssimo, ele nos oferece o sÃmbolo. Louvado sejas tu meu Senhor pela irmã Lua e pelas Estrelas no céu tu as formaste claras, preciosas e belas. Louvado sejas tu meu Senhor pelo irmão Vento, e pelo ar e pelas nuvens pelo azul calmo e por todos os tipos de tempo, graças a eles tu manténs com vida todas as criaturas. Louvado sejas tu meu Senhor pela irmã Ãgua que é tão útil e sábia preciosa e casta. Louvado sejas tu meu Senhor pela irmão Fogo através do qual tu iluminas a noite, ele é belo e alegre, indomável e forte. Louvado sejas tu meu Senhor pela irmã nossa mãe a Terra que nos carrega e nos alimenta, que produz a diversidade dos frutos com as flores matizadas e as ervas. Louvado sejas tu meu Senhor por aqueles que perdoam por amor de ti, que suportam provações e doenças, felizes se conservam a paz porque por ti, AltÃssimo, eles serão coroados. Louvado sejas tu meu Senhor por nossa irmã a Morte corporal, porque nenhum homem vivo dela pode escapar, infelicidade para aqueles que morrem em pecado mortal, felizes aqueles que estiverem fazendo tua vontade quando elas os surpreender 96 porque a segunda morte não poderá prejudicá-los. Louvai e bendizei ao Senhor, dai-lhe graças e servidão com toda a humildade. 166 166 Ver: LE GO F F , 2005, p. 115–7. ―Tradução [para o francês] por Damien Vorreux, O.F.M., no livro dele e de Théophile Desbonnet Saint François d‘ Assise. Documents. Écrits et premières biographies, Paris, Éditions franciscaines, 1968, p. 196–7 (parcialmente revista por Jacques Le Goff).‖ 97 A P Ê N D I C E 3 Ãntegra do ―Louvação a Deus para suas criaturas‖ na obra de SPOTO, 2010. 98 L O U V A Ç Ã O A D E U S P A R A S U A S C R I A T U R A S 167 Altissimu, ominipotente, bonsignore, tue sono le laude, la gloria elhonore et omne benedictione. AltÃssimo, todo-poderoso, bom Deus: a Ti o louvor, a glória e a honra e todas as bênçãos. Ad te solo, Altissimo, se konfano et nullu homo enne dignu te mentovare. A Ti somente, AltÃssimo, elas pertencem e homem algum é digno de mencionar Teu nome. Laudato sie, misignore, cum tucte le tue creature, spetialmente messorlo lo frate sole, loquale iorno et allumini noi par loi. Sê louvado, Senhor, com todas as Tuas criaturas, especialmente o Senhor Irmão Sol, que é o dia e por meio do qual nos dás a luz. Et ellu ebellu eradiante cum grande splendore: de te, Altissimo, porta significatione. E ele é belo e radioso com grande esplendor E feito à Tua semelhança, AltÃssimo. 167 ―Francisco deixou brotar um dos grandes hinos que nos vieram da civilização medieval, uma canção adiantada vários séculos em relação a seu tempo, no que se refere à sensibilidade mÃstica. [...] Não temos registro da melodia que ele improvisou, mas o dialeto umbro original ficou preservado com sua música verbal intata.‖ SPO TO , 2010, p. 311–3; 325. 99 Laudato si, misignore, per sora luna ele stele: in celu lai formate clarite et pretiose et belle. Sê louvado, Senhor, pela Irmã Lua e as estrelas: no céu as formaste, claras, preciosas e belas. Laudato si, misignore, per frate vento, et per aere et nubilo et sereno et omne tempo per loquale a le tue creture da sustentamento. Sê louvado, Senhor, pelo Irmão Vento, e pelo ar nublado e sereno e todos os tipos de clima por meio dos quais dás sustento a Tuas criaturas. Laudato si, misignore, per sor aqua, Laquale et multo utile et humile et pretiose et casta. Sê louvado, Senhor, pela Irmã Ãgua, que é muito útil e humilde, preciosa e pura. Laudato si, misignore, per frate focu, per loquale ennalumini la noste: edello ebello et iocundo et robusto et forte. Sê louvado, Senhor, pelo Irmão Fogo por meio do qual iluminas a noite, e ele é belo e alegre, robusto e forte. Laudato si, misignore, per sora nostra matre terra, 100 laquale NE sustenta et governa, et produce diversi fructi com coloriti flori et herba. Sê louvado, Senhor, por nossa Irmã, a mãe Terra, que nos sustenta e governa e que produz variados frutos, com flores e ervas coloridas. Laudato si, misignore, per sora nostra, morte corporale, da laquale nullu homo vivente poskappare. Gai acqueli ke morrano NE le peccata mortali! Beati quelli ke trovarane le tue sanctssime voluntati, ka la morte segunda nol farra male. Laudate et benedicite, misignore, Et rengratiate et serviate li cum grande humilitate. Sê louvado, meu Senhor, por nossa Irmã Morte Corporal, da qual nenhum vivente pode fugir. Ai daqueles que morrerem em pecado mortal! Abençoados aqueles a quem a morte venha encontrar em Tua santÃssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal. Louva e abençoa meu Senhor e agradece-Lhe, E serve-O com grande humildade.